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Louco por uma guerrinha
Chávez deu armas às Farc. Agora, fala todo dia em uma
guerra com os Estados Unidos e a Colômbia. Tudo jogo de
cena, mas o triste é que a destruição da Venezuela continua
Duda Teixeira
Ariana Cubillos/AP |
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Quando começa uma ditadura? Até agora, essa era a principal pergunta que pairava sobre a Venezuela. Eleito e reeleito pelo voto popular, o tenente-coronel Hugo Chávez Frías tem torpedeado sistematicamente as instituições democráticas para implantar o que chama de "socialismo do século XXI" - uma mistura do pior que têm a oferecer o populismo, o ultranacionalismo e o esquerdismo em suas manifestações mais infantis. Ao longo de dez anos, com um típico surto de hiperatividade nas últimas semanas (veja um resumo no quadro), os principais requisitos para um regime totalitário foram se acumulando: imprensa acuada, Judiciário cooptado, opositores exilados, economia estatizada, Legislativo domesticado e educação ideologizante. Chávez tem apelo, em especial entre as camadas da população que nunca se sentiram representadas, e usou - muito mal, mas usou - o dinheiro do petróleo para simular melhorias para os mais desvalidos. Também é hábil na manipulação cínica do antiamericanismo, como demonstrou ao transformar o caso das armas que saíram do arsenal venezuelano direto para as mãos dos bandidos pseudoesquerdistas da vizinha Colômbia em crise diplomática sobre a atuação de forças americanas no país em operações de repressão ao narcotráfico. Quando não seduz pelo populismo e pelas benesses, ele usa milícias que atacam opositores - depois, finge condenar exageros, como no caso do ataque à Globovisión, baseado na premissa absurda de que gangues armadas poderiam agir em plena capital do país sem o seu beneplácito. Tudo isso é conhecido, e a ópera-bufa da semana passada só relembrou como é triste ver Chávez e seus chavetes destruir o projeto democrático. Mas, enquanto a primeira dúvida vai se esclarecendo, da pior maneira possível, outra questão, tão ou mais dramática que a primeira, surge no ar. A Venezuela é um estado que promove o terrorismo? Poderia, ainda, estar afundando no pântano do tráfico de drogas?
As peças necessárias para compor a resposta a essas perguntas têm brotado aos borbotões desde que o guerrilheiro Raúl Reyes, então considerado o número 2 das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), foi morto em uma ação do Exército colombiano em território do Equador. Seus notebooks, encontrados entre os escombros do ataque, revelaram-se uma fantástica caixa de Pandora que tem exposto em detalhes a atuação das Farc, que alia o discurso esquerdista à prática do narcotráfico, e sua ampla rede de colaboradores. Aos 600 gigabytes de informação fornecidos involuntariamente por Reyes, soma-se volume quase semelhante de vídeos, fotos e e-mails encontrados em outros laptops. Depoimentos de ex-guerrilheiros e de pilotos capturados também compõem um quadro detalhado. Alguma dúvida sobre a conclusão? Se houver, esclareça-se: Chávez dá dinheiro, guarida, armas, assistência médica e incansável apoio político às Farc, bando que controla 60% da produção e do tráfico de cocaína na Colômbia. Nas mensagens trocadas entre a elite do grupo ele é chamado de Angel, ou Anjo. Entre as "bondades" angelicais está o caso dos lança-foguetes antitanque que haviam sido vendidos pela Suécia ao Exército venezuelano e - surpresa, surpresa - aparecem em poder das Farc. Com capacidade de perfurar um muro de concreto, os projéteis podem explodir aviões e helicópteros, justamente os principais instrumentos usados na campanha que tem acuado os narcoterroristas. Diante da prova irrefutável do crime, Chávez recorreu à tática habitual do contra-ataque: congelou relações diplomáticas com a Colômbia, insultou o presidente Álvaro Uribe, suspendeu o comércio bilateral e transformou o uso de bases militares colombianas por forças americanas na questão central. Nem é preciso dizer que o governo brasileiro aquiesceu com prazer. Em face da ameaça representada por uma força clandestina de vários milhares de militantes que espalham a extorsão, o sequestro e o tráfico de cocaína nas proximidades das fronteiras nacionais, e da ação antidrogas de até 800 militares sob comando do governo Obama, Brasília optou sem hesitar pela condenação à segunda opção.
Apesar de terem constituído um mesmo país, a Grande Colômbia, e terem compartilhado o mesmo herói libertador, Simon Bolívar, e trajetórias históricas cheias de percalços, Colômbia e Venezuela ocupam hoje polos opostos. No século XX, enquanto a Colômbia esteve apenas dez anos sob regime ditatorial, a Venezuela enfrentou sete ditaduras que consumiram mais de meio século. Em compensação, a Colômbia teve uma guerra civil terrível e, depois de um período de estabilidade, viveu um flagelo nacional com a violência inominável instaurada quando floresceram os grandes chefes do tráfico de cocaína. Nas décadas de 80 e 90, o país quase afundou por completo na autodestruição. Quando Bogotá esteve sitiada, viajar em estradas rumo ao interior era certeza de sequestro. Políticos eram assassinados - ou consumidos pelo poder de corrupção da droga. Plomo o plata - bala ou dinheiro. Para muitos colombianos de então, a Venezuela era o vizinho estável onde poderiam tentar recomeçar a vida. A recuperação do país foi esboçada em 1999, com a assinatura do Plano Colômbia. Desde então, os americanos ajudam - com dinheiro, armas, treinamento e inteligência - os policiais e militares colombianos a combater os plantadores de coca e os guerrilheiros que lhes dão proteção. O sucesso é incontestável: o número de sequestros caiu 85%, a economia cresceu e o investimento externo quintuplicou. A produção de cocaína resiste, mas atualmente a droga não sai mais diretamente da Colômbia para a distribuição nos Estados Unidos e na Europa. Adivinham que país se transformou na principal plataforma de saída dos aviões clandestinos carregados de coca?
Em outros campos a Venezuela de hoje também parece a Colômbia voltando no tempo. A economia está sendo destruída. Entre os motivos estão congelamento de preços, expropriações e aparelhamento ideológico da grande, e quase exclusiva, fonte de renda, o petróleo. A corrupção supera até os conhecidos padrões latino-americanos. Faltam produtos de primeira necessidade - e, cada vez mais, os de segunda e terceira também: importar qualquer coisa virou um inferno. A inflação deve chegar a 36% neste ano, a maior da região. Para encher, mesmo que tropegamente, as prateleiras dos supermercados, o país depende, ironicamente, da Colômbia. Caracas, e não Bogotá, é a cidade mais perigosa da América do Sul. Em dez anos de Chávez, 1 milhão de venezuelanos de nível superior e técnico emigraram. Muitos foram para a Colômbia. Infelizmente, quando a maioria dos venezuelanos descobrir o embuste de Chávez, terá de confrontar um sistema construído para a sua perpetuação no poder. Todo mundo sabe como é duro acabar com uma ditadura.
Com reportagem de Juliana Cavaçan