Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 07, 2008

''Partidarização e independentismo'' Gaudêncio Torquato

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, prima por não se enquadrar na máxima de Francis Bacon, o filósofo inglês que, há quatro séculos, perorava sobre a missão dos juízes: "Devem ser mais reverendos do que aclamados, mais circunspectos do que audaciosos." A autoridade máxima do Judiciário, magistrado de elevado porte intelectual, profundo conhecedor dos ramos do Direito e seus liames com as vastas áreas das ciências sociais, mais parece interessado em dar sentido ao preceito aristotélico de que o homem, como animal político, vivendo em sociedade, não pode deixar de participar da vida da cidade (polis), sob pena de se tornar "um ser vil ou superior ao homem". Mendes exerce o conceito de política no sentido lato que o filósofo grego, criador do pensamento lógico, descreveu num tratado sobre Política que conseguiu resistir a 2.300 anos de história. Compreende-se, assim, a insistência com que o ministro Gilmar, sob os auspícios da toga, procura pôr o dedo em pústulas que teimam em corroer o corpo de nossas instituições.

As últimas estocadas de Sua Excelência se deram em duas direções: a primeira atingiu a estrutura do Estado, mal-ajambrada pela partidarização de quadros que a integram; a outra, na esfera do próprio Judiciário, atacou a desarmonia entre os caminhos que levam ao altar da Justiça, particularmente na via da primeira instância, onde certo "independentismo" seria responsável por sentenças precárias. Ao puxar para o centro do debate duas questões fulcrais para o aperfeiçoamento do nosso sistema democrático, o presidente do STF assumiu o risco de, mais uma vez, ser malvisto, logo ele que, como a mais alta autoridade do Judiciário, poderia preservar-se. As contratações observadas são pólvora seca na fogueira política armada por alguns atores da cena institucional. De qualquer maneira, as atitudes do ministro Gilmar, que tem usado o poder de expressão para denunciar desvios de rota, clamar por correções na arena política, corrigir deformações em instâncias judiciais, são louváveis. Trata-se de uma voz praticamente isolada em defesa de ajustes institucionais objetivando preencher as lacunas do Estado de Direito.

A assertiva de que a "partidarização do servidor é perigosa" bate direto no tumor que se alimenta da cultura patrimonialista, semeada entre nós desde os tempos coloniais. O "feudalismo" que separa os campos da administração pública, e que ampliou territórios por ocasião do ciclo dos coronéis da República Velha, desfila, hoje, aos nossos olhos de maneira exuberante e vestido com as cores partidárias. Parcela das massas funcionais pega a montaria da res publica por indicação de animais políticos que conseguem fisgar fatias da máquina estatal. Outra parcela se integra a projetos partidários de conquista e manutenção de estruturas de poder, usando o domínio administrativo para servir a uma causa, a uma ordem. Esse é o tumor que o ministro quer extirpar. Pois "o servidor público deve ser apartidário", aduz. O funcionalismo público deve agir sob o império da impessoalidade, o que, em outros termos, quer significar igualdade no tratamento das questões e demandas. O ordenamento jurídico ensina: "Todos são iguais perante a lei." Ao subordinar sua ação a uma missão de caráter partidário, o servidor desnivela os iguais e rompe o padrão ético e moral que separa o que é público do que é privado.

Os serviços públicos são bens inalienáveis, não negociáveis, e quando utilizados de maneira torta comprometem a moral do Estado, que deve ser o espelho de padrões e valores a serem seguidos pelos cidadãos. Infelizmente, a estrutura do Estado está inundada por militantes, muitos despreparados, que pagam dízimos ao partido a que servem. Fazem parte da contabilidade do custo Brasil. Há gente de alta qualidade técnica, particularmente nas áreas econômica, tecnológica e de planejamento. Mas há milhares de servidores que agem como os políticos do passado, cujo lema era: "Aos amigos, pão; aos inimigos, pau." Em outras palavras, o zelo pelo interesse público passa, antes, pela lupa do interesse partidário. Imagine-se essa contrafação em setores como os de segurança e inteligência. É um perigo. No final das contas, o que se vê é o princípio da legalidade jogado na lata de lixo. Os absurdos se acumulam.

Ao lado da partidarização, o presidente do STF expõe a ferida do "independentismo". O neologismo inventado pelo ministro não é sinônimo de independência, valor intrínseco à dignidade do juiz. Referiu-se ele a certos juízes que, desviando a atenção da súmula vinculante, abarrotam as instâncias superiores com suas decisões intempestivas. Distingue-se matiz politiqueiro borrando togas - poucas -, principalmente por parte de atores atraídos pelas luzes da ribalta, tomados de vigor messiânico. Quando um juiz diz que "age em nome do povo", mais parece sensibilizado pelo eco das massas do que tocado pelo espírito das leis. Para lembrar o conselho do grande Rui Barbosa aos juízes, "não receeis soberanias da terra: nem a do povo, nem a do poder. O povo é uma torrente, que rara vez se não deixa conter pelas ações magnânimas".

Se o ideário do heroísmo está na ordem do dia do País, que seja iluminado pelo farol da lei. Se a vontade é de passar o Brasil a limpo, que a onda cívica nos banhe com as águas da moral, a velha moral que o presidente Dutra um dia passou na cara de um ministro que lhe cobrara a nomeação do terceiro e do quinto colocados num concurso: "Não assinei os decretos porque serão nomeados os que tiraram em primeiro e segundo lugares." Ao retrucar não haver lei recomendando nomear apenas os primeiros colocados, o velho marechal fechou a conversa: "Há, sim, ministro. A moral. A moral é uma lei."

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