A Virgem sob suspeita As aparições de Nossa Senhora de Medjugorje estão na mira do Vaticano. A Igreja desconfia da veracidade dos relatos dos seis videntes que, desde 1981, dizem receber mensagens da Virgem. Além disso, o líder espiritual deles foi acusado de "manipular consciências" e de "imoralidade sexual"
Os malfeitos de Vlasic datam de antes do início das visões em Medjugorje. Em 1976, seis anos depois de se tornar padre, ele engravidou uma freira chamada Rufina. Para evitar o escândalo, convenceu-a a partir para a Alemanha, sob o argumento de que, tão logo abandonasse o hábito, ele se juntaria a ela. Os meses passavam e nada de Vlasic cumprir a promessa. Inconformada, Rufina cobrou a palavra do padre por meio de cartas. Em resposta, ele desconversava, chegando a pedir à freira grávida para "seguir o exemplo de Nossa Senhora e aceitar seu destino em terras estrangeiras, comportando-se com discrição". História mantida em sigilo, Vlasic foi transferido da cidadezinha de Capljina para Medjugorje em setembro de 1981, quase em seguida à primeira aparição da Virgem, em junho. Orador hábil, pertencente à Renovação Carismática, movimento católico caracterizado por grupos de oração animados, missas coreografadas e cenas de transe místico, Vlasic transformou-se em conselheiro espiritual dos seis jovens videntes, também de famílias carismáticas. Coincidência ou não, foi a partir dessa aproximação que as visões adquiriram teatralidade. "Um exemplo: no momento em que afirmam falar com Maria, movem a boca como se falassem por ela", diz Cecília Mariz, professora de sociologia da religião da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. O sucesso de Vlasic em Medjugorje durou relativamente pouco. De acordo com uma reportagem assinada por Simon Caldwell na revista inglesa The Spectator, em 1984, algumas das cartas enviadas pelo padre à freira Rufina foram lidas pela locatária do apartamento onde ela vivia. Indignada, a mulher enviou a correspondência a Pavao Zanic, bispo da diocese de Mostar, na Bósnia, em cuja jurisdição está Medjugorje. Zanic, por sua vez, remeteu-a a um prelado alemão no Vaticano – ninguém menos do que o cardeal Joseph Ratzinger, que viria a se tornar o atual papa Bento XVI e então presidia a Congregação para a Doutrina da Fé. Em seu notório estilo blitzkrieg, Ratzinger mandou transferir Vlasic para a cidade italiana de Parma. Apesar de mais perto dos olhos de Roma, o padre continuou a divulgar as mensagens de Nossa Senhora de Medjugorje. No fim dos anos 80, ele criou a comunidade Rainha da Paz, Completamente Vosso. Sob sua liderança, integrantes do grupo passaram a relatar visões. Não só da Virgem, como de Jesus e até de extraterrestres. Para além do comportamento suspeito de Vlasic, há outro motivo para a desconfiança da Igreja em relação ao fenômeno de Medjugorje. As aparições tiveram início um ano depois da morte de Josip Broz Tito, o ditador comunista que mantinha com mão-de-ferro a unidade da então Iugoslávia. Seu desaparecimento alimentou ainda mais as ambições de independência das repúblicas que compunham o país, entre elas a Bósnia. O que Nossa Senhora tem a ver com as confusões nos Bálcãs? Talvez não fosse essa a intenção da santa, mas o fato é que as visões no começo da década de 80 foram oportuníssimas do ponto de vista político: serviram para fortalecer os franciscanos locais, naquele momento fonte de apoio de grupos nacionalistas croatas de extrema direita que desejavam ampliar sua influência na Bósnia. Ou seja, num primeiro instante, as aparições levaram a que todo o esforço do Vaticano para enfraquecer os franciscanos na região fosse por água abaixo. "A notícia das aparições ajudou os integrantes da ordem a ganhar prestígio junto à população. Isso tornou tudo mais delicado para a Igreja", diz Carlos Steil, antropólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Como se não bastassem as estripulias do padre Vlasic e a oportunidade política das visões, Nossa Senhora de Medjugorje contraria a tradição que cerca a Virgem – o que redobra a desconfiança da Igreja em relação ao fenômeno. Em primeiro lugar, a Nossa Senhora de Medjugorje aparece (e fala) demais. A levar a sério os relatos dos seis videntes, ela já teria dado o ar de sua graça mais de 40 000 vezes nos últimos 27 anos – e em vários lugares, não só no vilarejo bósnio. "Maria, no Evangelho, é um exemplo de discrição e acolhimento", diz o vaticanista italiano Giancarlo Zizola. "Essas aparições em Medjugorje são um imbróglio." Discrição não é força de expressão: para se ter uma idéia, no Novo Testamento inteiro, há apenas seis frases atribuídas à mãe de Jesus, mais uma saudação a Santa Isabel. Há outro elemento estranho: boa parte das mensagens de Nossa Senhora de Medjugorje está em desacordo com a imagem de Maria talhada por séculos de história. A santa bósnia pede que os videntes rezem pela paz, como as de Fátima e Lourdes, mas freqüentemente menciona um nome estranho ao universo da mãe de Jesus: Satanás. E de maneira bastante amedrontadora. Em 1917, por exemplo, quando Nossa Senhora de Fátima apresentou o inferno – um mar de fogo sobre o qual flutuavam e gemiam formas humanas –, as três crianças que descreveram a visão não ficaram aterrorizadas. Sentiram-se protegidas pela santa. No caso de Medjugorje, quando o mal é o tema das aparições, ele invariavelmente causa medo. Num dos relatos mais célebres, a vidente Mirjana mostrou-se horrorizada com as feições de Nossa Senhora. De acordo com ela, por alguns segundos, os olhos da Virgem permaneceram vazios de expressão. A explicação é que ela queria que Mirjana percebesse a diferença entre o mal e o bem. "A participação de Maria no Evangelho é sempre uma manifestação de amor e agradecimento, nunca de medo", diz Afonso Murad, professor de teologia do Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus, em Belo Horizonte. Hoje, Vicka, Ivan, Ivanka, Mirjana, Jakov e Marija estão na faixa dos 40 anos. Quatro deles permaneceram na Bósnia. Marija vive em Monza, na Itália, e Ivan, em Boston, nos Estados Unidos. Todos se casaram (Ivan com uma ex-miss Massachusetts), tiveram filhos e engordam a renda familiar com palestras sobre a Nossa Senhora de Medjugorje. Como algumas visões acontecem com hora marcada, é possível promover espetáculos em torno delas – que rendem a videntes e organizadores um bom dinheiro. Em 1997, durante uma visão na Califórnia, Ivan conseguiu arrecadar 70 000 dólares sob a forma de doações voluntárias. Há três anos, formou-se um grupo de estudos, cujo núcleo é composto de trinta pessoas, entre leigos e religiosos, para analisar a veracidade do fenômeno. Conduzidos pela Pontifícia Academia Mariana Internacional (Pami), instituição ligada ao Vaticano, os trabalhos correm em segredo e estão previstos para acabar até o fim de 2009. "É extremamente remota a probabilidade de o veredicto ser favorável às aparições em Medjugorje", diz um dos vários consultores da Pami. A conclusão do grupo de estudos é peça fundamental para uma posição definitiva da Santa Sé em relação às visões de Medjugorje. O Vaticano, ressalte-se, é muito cuidadoso em relação a aparições em geral. Mesmo os fenômenos reconhecidos oficialmente só têm lugar para homenagens nos calendários nacionais da Igreja – o dia de Nossa Senhora Aparecida, por exemplo, é comemorado apenas no Brasil. Nenhum católico é obrigado a acreditar em aparições de santos. "Mas elas têm o papel fundamental de alimentar a fé", diz Afonso Soares, presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mariano ardoroso – creditava à intercessão de Nossa Senhora de Fátima o fato de ter saído com vida do atentado na Praça de São Pedro, em 1981 –, o papa João Paulo II esteve na Bósnia por duas vezes e jamais colocou os pés em Medjugorje. "Foi o único grande local de peregrinação católica que não recebeu a visita dele", diz o padre Vicente André de Oliveira, diretor da Academia Mariana do Brasil e pároco do Santuário de Nossa Senhora Aparecida. Se um papa místico como João Paulo II não cedeu à popularidade da Virgem dos Bálcãs, só um milagre, e dos grandes, possibilitará que um papa cerebral como Bento XVI venha a reconhecer a sua legitimidade.
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Nossa Senhora de Medjugorje sob suspeita
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