Herói da resistência
Juliana Linhares
Fotos Lailson Santos |
Extraterrestre Feito para durar: músculos de fibras lentas e pulmões poderosos impulsionam o atleta |
Pele em cima de osso, duro como lava congelada do Havaí, onde se coroou campeão, o carioca Alexandre Ribeiro, 43 anos, é praticamente um super-homem. Com 1,80 metro de altura, 70 quilos e 9% de gordura corporal (em pessoas normais, o desejável é 20%), ele confirmou seus poderes quase sobre-humanos em 30 de novembro, ao ganhar o campeonato de triatlo mais insano do planeta, o Ultraman. Em três dias, com jornadas que começavam às 6 e iam até as 14 horas, percorreu 10 quilômetros de natação em mar aberto (em três horas e doze minutos), 421 quilômetros de bicicleta (em doze horas e 24 minutos) e 84 quilômetros de corrida (em seis horas e quinze minutos). Cansou só de ler? Pois esta é a quarta vez que Ribeiro compete e a terceira que vence a prova – na única que não ganhou, chegou em segundo. "Coisa de psicopata", como ele próprio define, com o sorriso de felicidade dos verdadeiramente obcecados. Ribeiro adora o que faz – com menos do que isso, os sacrifícios não compensariam. "O Ultraman é o apogeu da minha carreira, a perfeição de todo o meu trabalho", diz. Sendo assim, três primeiros lugares já estão de bom tamanho? "Não. Ainda quero bater o recorde da prova, que são oito minutos a menos do que consegui. Vou tentar de novo, talvez já no ano que vem", antecipa.
Além das provas extenuantes, o Ultraman, realizado na Ilha de Kailua-Kona, tem outras características que o transformam em um campeonato para loucos e poucos (apenas 35 atletas). Primeiro, não dá prêmio algum – os esportistas competem pelo prazer de se superar. As provas são realizadas em temperaturas que batem nos 42 graus. Na natação, os atletas deparam com correnteza forte, águas-vivas (neste ano, três sofreram queimaduras no rosto) e golfinhos, que monitores em caiaques vão tirando do caminho – sim, muita gente sonha em nadar com golfinhos, mas definitivamente não quando está no Ultraman. No ciclismo, mais de 70% do percurso é de subidas íngremes em direção ao Parque Nacional dos Vulcões. A paisagem deslumbrante mal é registrada, em especial na posição de Alexandre: "Enquanto a maioria dos atletas sobe rampa em pé nos pedais da bicicleta, eu subo sentado. É bem menos confortável, mas desse jeito eu não sofro tanto com a barreira do vento e os músculos das coxas se desgastam muito menos". A dupla maratona é a última prova e justamente a mais exaustiva; os competidores precisam comer e tomar líquidos o tempo todo, sem parar de correr. Além de água e isotônico, como todo mundo, Alexandre toma muito café e Coca-Cola. "A cafeína dá uma injeção de ânimo", garante. O amigo corredor José Carlos Ponciano, que o acompanhou e ajudou na competição, fez a conta: nos 84 quilômetros, Ribeiro bebeu e se refrescou com 130 litros de água e consumiu dezoito latas de refrigerante, 1 litro de café quente, doze laranjas, 24 bananas e vinte pacotinhos de proteína. "Tem de ser louco para fazer o Ultraman, e o Alexandre é mais doido que os outros competidores", avalia. O segundo integrante da equipe do triatleta é seu filho mais velho, Kaillani, 11 anos, encarregado de abastecer o pai com a incrível quantidade de comida e bebida. "Cada vez que ouvia ‘Vai, papai’, eu ganhava fôlego novo", conta Alexandre. Num truque menos ortodoxo, na noite anterior à corrida, tomou três cervejas. "O álcool dá uma soltada na musculatura", explica.
Alexandre Ribeiro é perfeito para o que faz no sentido de que reúne as características físicas congênitas e a disciplina psicológica exigidas pelas provas de longa duração. A maioria de suas fibras musculares é lenta, ou seja, proporciona muita resistência e pouca explosão ao músculo. Sua capacidade aeróbica é altíssima, o que significa que os pulmões mandam oxigênio para os músculos de maneira rápida e abundante. As qualidades genéticas são sistematicamente aperfeiçoadas no forte e prolongado treinamento, que lhe rende horas e horas sozinho com seus pensamentos. Aliás, nada mirabolantes: "Planejo estratégias para as provas, como a hora em que devo acelerar, quando devo comer mais ou menos. Também penso muito nos meus problemas pessoais. Fico tentando arrumar solução para falta de dinheiro, complicações com as crianças, questões da empresa". Aos 8 anos, incentivado pelo pai, ex-marinheiro e atleta amador, ele já corria 8 quilômetros na areia da praia. "Meus amiguinhos odiavam passar o fim de semana lá em casa. Eu só queria saber de correr", conta. Aos 13, participou da primeira meia-maratona (21 quilômetros); aos 15, fez duas maratonas (42 quilômetros cada uma). E aos 18 realizou seu primeiro Ironman, que é um triatlo com aproximadamente metade das distâncias do Ultraman. Desde então, acumulou trinta dessas provas no currículo, sem jamais vencer nenhuma, porque o tipo de treino que faz o torna lento demais. Como não tem patrocínio – sua equipe no Havaí em novembro era composta de Ponciano, Kaillani e só –, Alexandre intercalou os treinos com os horários de trabalho como instrutor de spinning em uma academia e dono de uma assessoria esportiva que atende 100 alunos particulares e 400 funcionários e clientes de uma empresa. Nela, conta com quatro ajudantes, mas põe ele mesmo a mão nas planilhas quando o nome da aluna é Camila Pitanga, Carolina Ferraz ou Ingrid Guimarães. "Ele comemora cada minuto a mais que consigo correr como se fosse uma vitória; me chama de queniana e manda e-mails falando para eu não desistir", elogia Ingrid.
Ágil, leve e bem coordenado, Alexandre não pára quieto e executa várias ações simultaneamente: levanta do sofá apoiado numa perna, apanha um copo de água com uma das mãos enquanto com a outra desenha no ar a figura de uma ilha, ao explicar o terreno em que fez a prova. Contrariando os mandamentos de todos os treinadores, não faz musculação nem alongamento de espécie alguma. Justifica com frases como "Não tenho tempo" e "Já viu cavalo puxar peso?", mas de fato acha que não adiantam nada. Depila o corpo todo a cada seis semanas, o que, com a ajuda da calvície, das veias saltadas, das costas curvadas por causa dos milhões de horas na bicicleta e dos olhos azuis, lhe confere uma aparência ligeiramente assemelhada com Gollum, o personagem de O Senhor dos Anéis. No momento, recupera-se dos estragos do Ultraman: está com quatro unhas dos pés por cair, bolhas em quase todos os dedos e o corpo torrado. Nos fins de semana, abre uma exceção na dieta de atleta e se permite meia garrafa de vinho, além de um hambúrguer com fritas em companhia dos filhos. Kaillani, Kaipo, 7, e Maila, 3 anos, nomes havaianos que ele aprendeu depois de tantas idas ao arquipélago, são a verdadeira prova de resistência de Alexandre. Pai separado, ele é quem cuida dos três. Os dois meninos já competem em triatlos mirins. Alexandre não tem planos – nem namorada – para dividir as tarefas paternas. "É duro agüentar o meu pique", admite.
Seguindo a trilha Com Kaipo, Maila e Kaillani, os filhos de nomes havaianos: os dois meninos já competem |