Tinha três anos quando as prerrogativas constitucionais foram suspensas por completo, no dia 13 de dezembro de 1968, e substituídas pela vontade dos donos do poder mediante da edição do Ato Institucional nº 5.
Era um adolescente de 13 anos quando, em 1978, o regime se viu compelido a revogar seu ato mais arbitrário, data que se convencionou marcar como o fim da ditadura e o início da distensão.
A democracia só voltaria quase inteira em janeiro de 1985, com a eleição ainda indireta de um presidente civil, morto antes da posse, substituído pelo vice, aliado do antigo regime, um exemplar fiador da transição.
Aos cidadãos brasileiros só seriam devolvidos na plenitude seus direitos e garantias em 1988, com a conclusão da Assembléia Nacional Constituinte e o arcabouço legal sob o qual Fausto Martin De Sanctis iniciaria três anos depois, aos 27 de idade, a sua carreira de juiz.
Trajetória impecável, implacável, referida no mais escorreito senso de Justiça. Especializado em crimes de colarinho-branco, condenou gente importante, traficantes, doleiros, empresários, banqueiros, enquadrou aos costumes entre todos os mais notórios.
Tudo dentro dos conformes até o momento em que, acusado de extrapolar os limites da lei, deu expressão ao sentido de seu coração justiceiro e resolveu negar a supremacia dos ditames da Constituição, para ele apenas um conjunto de idéias que não podem restringir as ações necessárias à transformação do Brasil.
Disse o juiz em sua justificativa: "A Constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso, contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado. A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento; nós somos os valores e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição."
Fausto Martin De Sanctis foi muito criticado por externar um pensamento atinente ao senso comum, expressão pronta e acabada de um sentido de justiça voluntarioso, concernente às ruas, mas incongruente com o dever dos tribunais: a guarda absoluta do respeito às leis, não obstante suas limitações e imperfeições.
O juiz De Sanctis certamente conhece muito bem o texto do ato mais inconstitucional da história recente do Brasil, salvo-conduto à violência do Estado contra os cidadãos que, ao juízo dos parâmetros da ditadura, eram inimigos do Brasil.
A ausência de vivência daquela época talvez tenha ensejado no juiz e em tantos outros brasileiros de sua geração o sentimento de que o sentido do correto é superior aos entraves da lei. Tudo contra o mal se explica e justifica.
A distância de 40 anos obscurece a visão de que Artur da Costa e Silva e 16 ministros de Estado tinham plena convicção de que defendiam a preservação do modelo institucional mais conveniente ao Brasil.
Ao juiz e a todos os brasileiros que consideram a Constituição insuficiente para o cumprimento da missão indispensável de pôr o País nos eixos, seria recomendável a leitura daqueles 12 tenebrosos artigos.
Não porque em qualquer hipótese queiram se associar às ordens ali escritas, mas para que possam perceber o germe do abuso subjacente a um senso de justiça deturpado.
Ali, a alegação apresentada era a do imperativo de se preservar "a autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, desse modo, os meios indispensáveis à obra da reconstrução econômica, financeira, moral e política do Brasil".
Aqui, 40 anos passados, quando o juiz De Sanctis serve apenas como símbolo de uma boa intenção apartada da referência histórica e da força da isonomia dos princípios, o que se tem no Brasil é o risco da opção pelo caminho mais curto e aparentemente mais justo.
Não se deve comparar os propósitos, dirão os que ainda não compreenderam que não há cotejos acusatórios, mas um convite à reflexão. De fato, mas vamos reparar: no AI-5, que deu ao regime o poder de decidir sobre a vida e a morte dos brasileiros, nada autoriza a violência, a tortura.
Ela aparece como conseqüência. Tudo começa como uma proposição de respeito à lei, mas acaba em abuso porque os meios implicam indiferença às normas vigentes, "insuficientes" e, portanto, passíveis de atropelo.
Vale para o bem e para o mal, dependendo do ponto de vista do que seja bom ou mau. Esses 40 anos de AI-5 nos ensinam uma comezinha lição: antes uma Constituição imperfeita que a negação da supremacia do valor constitucional