Entrevista:O Estado inteligente

domingo, dezembro 07, 2008

Apoteose de cinismo O Estado de S. Paulo EDITORIAL,

Enquanto os Estados Unidos contam os dias até a posse de Barack Obama, em 20 de janeiro, George W. Bush ainda consegue emergir da condição de absoluta irrelevância a que foi relegado - não só como o presidente em fim de mandato que não fez o sucessor, mas principalmente por sua descomunal incapacidade de fazer algo que preste em benefício do seu povo, o que ele demonstrou à exaustão antes e depois do colapso de Wall Street.

Melhor teria sido se tivesse permanecido submerso, sob o peso do seu índice sem precedentes de impopularidade, quase na marca de 80%. Mandam, porém, os ritos da cultura política americana que as cerimônias do adeus à Casa Branca incluam uma seqüência de entrevistas com o presidente de saída. Assim, na segunda-feira, ao inaugurar a série que lhe toca, Bush tornou a se valer dos holofotes para abismar os concidadãos com um espetáculo de cinismo no mínimo à altura do seu pior, ao longo do que foi um dos piores governos da história de sua nação.

A apoteose consistiu em Bush se declarar arrependido de ter confiado nas informações de que Saddam Hussein dispunha de estoques de armas de destruição em massa. A "falha de inteligência" o levou a invadir o Iraque, iniciando uma guerra para a qual estava "despreparado". Em matéria de despreparo, Bush de fato teria volumes a contar, mas o que ele quis dizer ao entrevistador Charles Gibson, da rede ABC de televisão, é que não premeditara a guerra.

Chega a ser constrangedor contestar a patranha, tamanho o acúmulo de evidências solares - e de origens insuspeitas - de que a deposição de Saddam estava na agenda da Casa Branca de Bush desde a primeira hora, inscrita, entre outros, pelo vice Dick Cheney e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, sob inspiração dos ideólogos neoconservadores que finalmente chegavam ao poder em Washington naquele janeiro de 2001, como o sub de Rumsfeld, Paul Wolfowitz, e o chefe dos consultores do Pentágono, Richard Perle, codinome "príncipe das trevas".

A idéia da invasão - para "levar a democracia ao Oriente Médio" e assegurar a supremacia dos interesses geoestratégicos dos EUA na região de que mais dependem como supridora de petróleo, além de garantir a segurança de Israel - agradava sobremodo a Bush. Vingaria o pai que Saddam ameaçara matar na primeira Guerra do Golfo, em 1991 (mostrar-se-ia pela primeira vez superior ao ex-presidente em algo), daria vazão à certeza íntima de que era um predestinado de Deus, ajudaria os amigos da família a fechar grandes negócios no Iraque ocupado e pavimentaria o caminho à reeleição em 2004. O déspota de Bagdá estava na mira da junta bushista desde antes do 11 de Setembro.

No seu livro Against all enemies - inside America''s war on terror, um documento cabal sobre o governo Bush em face do terrorismo, o ex-conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca Richard Clarke conta que, em abril de 2001, na primeira reunião dos assessores do novo governo para tratar do problema, Wolfowitz, o segundo homem do Pentágono, estranhou que se falasse tanto "desse tal de Bin Laden". Explicado o porquê da ênfase, ele voltou à carga: "Bem, há outros que também ameaçam os EUA, o terrorismo iraquiano, por exemplo." Depois de ouvir que nunca houve uma ameaça terrorista iraquiana aos EUA, Wolfowitz argumentou que Bin Laden só poderia ter "o patrocínio de um Estado" - o Iraque de Saddam, naturalmente.

No dia 12 de setembro, a primeira coisa que Bush disse a Clarke e seus colegas foi: "Vejam se Saddam fez isso (os atentados)." Diante da resposta de que "foi a Al-Qaeda que fez isso", insistiu: "Eu sei, eu sei? Mas apurem o Iraque, Saddam." Quando a teoria do nexo entre Bin Laden e Hussein ruiu, o bushismo jogou a carta das armas de destruição em massa. A construção da farsa é história conhecida: o vice Cheney só faltou obrigar a CIA a confirmar a existência do arsenal, e o secretário de Estado Colin Powell exibiu na ONU "provas" risíveis, de que ele mesmo duvidava, como viria a confessar.

Agora, é tentador endossar o comentário de um espectador americano sobre o descaramento de Bush na sua entrevista à ABC: "Será que esse homem não poderia simplesmente ir embora e deixar as chaves da Casa Branca debaixo do capacho?"

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