Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 07, 2008

O presidente negro O Estado de S. Paulo Editorial

- 07/11/2008

O discurso de Barack Obama no Grant Park de Chicago, comemorando sua vitória, surpreendeu pelas qualidades de estilo e de fundo aqueles que não conheciam seus dotes oratórios, confirmando, por outro lado, o julgamento daqueles americanos que o consideram o melhor orador político dos EUA. É o discurso de um estadista que, além de uma mensagem de otimismo sobre o futuro americano, contém a chave para se entender a questão de fundo da jornada de 4 de novembro: a eleição do primeiro presidente negro em um país em que 43% do eleitorado branco, paradoxalmente, acabou fazendo o que fez sem ter amadurecido o suficiente para tal.

É verdade que a sucessão de desastres dos anos Bush foi decisiva para o êxito de Obama, mas também é verdade que um candidato democrata branco, mesmo sem as suas excepcionais qualidades, teria conquistado uma parcela muito maior dos eleitores brancos. Ainda assim, parcela quem sabe decisiva do eleitorado branco teria rejeitado o candidato democrata por ser negro, não tivesse ele desmoralizado com sua inteligência, cultura e competência política, tantos quantos estereótipos sobre a negritude a mentalidade racista fabricou ao longo dos séculos.

É o que o seu discurso evidencia mesmo para um espectador que jamais o tivesse ouvido falar sobre o problema racial dos EUA. Não há, na sua fala, nem o mais ínfimo vestígio do ressentimento que um negro americano naturalmente deve sentir pela inacabada história de discriminação, preconceito e desigualdade que o cerca. Mas Obama tornou a invocar, com a costumeira mistura de paixão e sobriedade de suas alocuções, as humilhações vividas pelos americanos de pele escura, durante e depois da escravidão, só que da ótica da superação - lembrando o We Shall Overcome do sonho de Martin Luther King -, porque "a América pode mudar". Certa vez, o polonês Isaac Deutscher, que desistiu de ser rabino para se tornar um dos grandes estudiosos do comunismo soviético, se definiu como um "judeu não-judeu" - numa complexa encruzilhada de tradições e culturas distintas, quando não antagônicas. Parafraseada, a expressão de certo modo se aplica a Obama.

A sua identidade, de fato, desafia os rótulos habituais. Não só por ser ele filho de mãe branca e pai negro, mas também porque não descende de escravos, era apenas criança quando irrompeu a luta pelos direitos civis e entrou para a política sem passar pelo movimento negro (embora tenha entrado na vida pública como "organizador social" remunerado, em uma comunidade negra de Chicago). Já o chamaram, por isso, de político "pós-negro". Fosse a sociedade americana culturalmente daltônica - em que, na frase de Luther King, as pessoas são julgadas pelo seu caráter, não pela cor de sua pele -, a negritude de Obama seria secundária e ele não seria fustigado na sua campanha presidencial pelo racismo branco e os efeitos do racismo reverso negro. Mas é na adversidade que se revelam os grandes líderes. E foi a exploração de uma tirada virulenta do pastor negro Jeremiah Wright, seu amigo e mentor espiritual, que deu a Obama a oportunidade de se pronunciar - o que até então evitara - sobre a questão racial nos EUA. Foi uma oração superlativa.

Nunca antes uma figura pública americana tinha feito, a portas abertas, uma análise tão lúcida, honesta e implacável com todos os racismos do problema perene no seu país onde "o passado não está morto e enterrado, mas, a rigor, nem mesmo passou", no aforismo de William Faulkner que lhe ocorreu mencionar. Obama integrou o combate às seqüelas da história a uma agenda de reformas progressistas "para todos" - negros, latinos, brancos - que delas necessitam nos EUA de hoje, em que 37% da população vive na pobreza (o maior índice desde 1928). E eles votaram em Obama: 95% dos negros, sim, mas também 66% dos latinos e 43% dos brancos - neste caso, mais do que em qualquer outro candidato democrata desde Lyndon Johnson em 1964. Para o colunista Thomas Friedman, do New York Times, a vitória de Obama assinala o fim da Guerra Civil, 145 anos depois da cessação das hostilidades entre o Norte e o Sul. É uma hipérbole, sem dúvida. No entanto, dá o tom da euforia e da esperança desatadas em todo o mundo com o advento, nos EUA, de um presidente negro.

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