Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 20, 2008

Wall Street depois do colapso

A cavalaria salvou o dia

O mundo financeiro parecia derreter na
semana passada quando George W. Bush
e seu secretário do Tesouro, Henry Paulson,
comandaram a maior intervenção
da história do capitalismo. Salvaram
o dia, o sistema e nossos bolsos


Ronaldo Soares


Montagem sobre fotos de Brian A. Vikander/Corbis/Latinstock – Mandel NGAN/AFP – Chris Kleponis/AFP
ORDEM DE ATACAR
Bush e Paulson (na montagem) usaram a riqueza e a força para impedir o desastre. Vão cobrar caro por isso


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Nesta reportagem
 
Quadro: O planeta finanças, gigante mas gasoso, superou em muito o planeta real e seu PIB
Nesta edição
• Cadê a confiança que estava aqui?
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• No dia em que a Terra tremeu...

Se as novelas de televisão são sempre histórias sobre ricos com problemas que o dinheiro não resolve, a maior crise dos mercados financeiros do século XXI é uma história sobre ricos e pobres com problemas que o dinheiro resolve – pelo menos em parte. A crise eclodiu na segunda-feira passada, quando um dos mais tradicionais bancos de investimento de Wall Street, o Lehman Brothers, foi a pique e afundou sem que seus pares ou o governo americano lhe estendessem uma mão salvadora. O naufrágio do Lehman foi fagulha no arsenal. Outro banco tradicional, o Merrill Lynch, correu para debaixo das asas do Bank of America, vendido por 50 bilhões de dólares, dois terços do seu valor de mercado. Lehman Brothers e Merrill Lynch, para quem não é familiarizado, eram astros de primeira grandeza. Logo outras estrelas começaram a se descolar do firmamento e cair sobre a cabeça dos investidores não mais apenas nos Estados Unidos, mas do outro lado do Atlântico. A maior hipotecária inglesa, o HBOS, foi vendida às pressas ao Lloyds.

O pânico virou terror quando a operação de salvamento pelo governo americano da maior seguradora do mundo, a AIG, teve o efeito de aumentar ainda mais a já ebuliente ansiedade geral. No meio da semana parecia que o mundo financeiro havia perdido a consistência interna e, sem as leis universais que o mantinham coeso, ameaçava derreter. Na quinta-feira, quando as bolsas mundiais já perdiam no total quase 4 trilhões de dólares, Washington mandou a cavalaria. Henry Paulson, secretário do Tesouro americano, anunciou que os Estados Unidos estavam dispostos a "gastar centenas de bilhões de dólares" para "desintoxicar" os bancos com dívidas podres em seus balanços. A promessa de mais dinheiro, o soar do clarim e o tremular da bandeira transformaram o pânico em euforia, e a semana terminou com as bolsas em altas histéricas em todo o mundo. O sistema voltou a acreditar em si mesmo. O capitalismo está salvo. Fim do primeiro capítulo.

Indranil Mukherjee/AFP
DESFILE NA ÍNDIA
A modernização dos países emergentes, o crescimento elevado da China e até a criação de uma nova classe média no Brasil se devem à bolha que estourou


A novela continua. Seu final depende de que os investidores também voltem a acreditar no sistema a longo prazo. Sim, porque a euforia do fim da semana passada, que deu às bolsas a maior valorização da história na sexta-feira, é apenas o reverso do pânico. É o outro lado do mesmo sentimento. Os especialistas têm até um termo para o fenômeno – panic buying, em inglês, como é todo o vocabulário desse universo em mutação. Nessa voracidade para comprar, exatamente como as donas-de-casa na famosa liquidação anual do Magazine Luiza, os investidores ignoram fundamentos e correm em busca das ações que eles acreditam terem se desvalorizado demais. Para vendê-las no dia seguinte, não mudam a cara. Recuperar a confiança no sistema é outra história (veja o quadro Depois da farra). Apenas como exemplo, examine-se o ocorrido com os dois únicos bancos de investimento de primeira linha dos Estados Unidos que escaparam da crise – o Morgan Stanley (MS) e o Goldman Sachs (GS). O MS perdeu quase um quarto de seu valor em bolsa, suas ações caíram 24% e o banco agora procura furiosamente uma fusão com alguma instituição comercial tradicional.

O Goldman Sachs, o primeiro de sua classe, perdeu 14% de valor em bolsa. É o único que deve continuar existindo com o próprio nome e gerência depois da segunda-feira negra da semana passada. Sendo o melhor, o mais sólido e o mais reputado dos bancos de investimento, o Goldman Sachs serve como base para a análise do sistema financeiro mundial atual, o que esta reportagem e as seguintes se propõem a fazer. O sistema se apóia em duas pernas. Uma, bem fininha, chama-se liquidez – ou seja, a capacidade de devolver aos investidores o dinheiro investido e os lucros quando eles assim o desejarem. Se um banco tem capacidade de devolver cada dólar a cada um dos investidores de uma só vez, ele tem 100% de liquidez. Um banco assim não precisa ter a segunda perna de sustentação do sistema, a confiança. O Goldman Sachs tem apenas 1 dólar para cada 25 dólares investidos. No jargão técnico, ele tem uma alavancagem de 25 – em termos reais são 40 bilhões de dólares em dinheiro de clientes para 1 trilhão de dólares de investimentos. Relembrando, o Goldman Sachs é o mais sólido e o único que sobreviveu incólume. Imagine-se, então, a alavancagem dos que sucumbiram.

Pelos cálculos da consultora McKinsey, a alavancagem média do sistema financeiro americano é de 10 – ou seja, em caso de um colapso total cada pessoa salvaria 1 dólar de cada dez investidos. Um gráfico desta reportagem tem vários exemplos desse tipo de alavancagem, entendida como a produção de riqueza financeira a partir de riqueza real ou a partir até de dívidas. A produção de riqueza financeira sobre dívidas, a securitização, está na base de toda a questão sobre a credibilidade do sistema e ajuda a explicar a crise de confiança da semana passada. Em resumo, algumas brilhantes mentes de Wall Street encontraram um meio de transformar dívidas, principalmente imobiliárias, em investimentos. Até aí nenhuma ousadia especial. O pulo-do-gato, que caiu de costas na semana passada, foi misturar em um mesmo pacote "dívidas podres", ou incobráveis, com dívidas contraídas por pessoas com vontade e capacidade de honrá-las. E, claro, empacotar e rotular tudo como dívida boa. Isso equivale a misturar água de esgoto a água filtrada e vender o volume total do líquido como soro fisiológico. Assim, um título da dívida assinado por um comprador de casa honesto e com bom salário passou a ter o mesmo valor (ou quase, para sermos exatos) de um título de um comprador deliciosamente apelidado de Ninja (no income, no job, no assets), alguém sem salário, sem emprego e sem patrimônio.

A McKinsey mostrou que há menos de vinte anos esse universo financeiro era muito menor e bem menos complexo. Para um PIB real global de 10 trilhões de dólares em 1980, havia de ativos financeiros no planeta cerca de 12 trilhões de dólares. Em 2006, enquanto o PIB real mundial chegava a 48 trilhões de dólares, os ativos financeiros batiam em 170 trilhões de dólares – a maior parte desse valor fabricada com aquela mistura de dívidas boas e dívidas ruins de que se falou acima. O planeta finanças tornou-se gigantesco e formado por gases tóxicos misturados a gases respiráveis. Não por acaso, a expressão usada pelo secretário Henry Paulson foi "desintoxicar" os balanços dos bancos de modo a identificar as dívidas podres. O governo americano vai bancar essas dívidas e procurar devolver ao sistema não apenas sua credibilidade, mas sua liquidez, além de, no processo, tentar que essas duas características não andem mais tão separadas.

Com o mundo salvo pela ação do governo americano, tem-se folga para calcular quanto vai custar a operação "desintoxicação" do sistema, imaginar como ele vai funcionar daqui para a frente e refletir sobre que efeitos positivos no mundo real teve a farra financeira. Comecemos pela última questão. Bolhas destroem riquezas quando estouram, mas também criam, e muitas, quando são infladas. É justamente o caso da bolha que estourou na segunda-feira passada. Na sua fase de crescimento, essa mesma bolha, esse mesmo sistema tóxico e demonizado da semana passada, foi o que produziu a liquidez mundial capaz de tirar da miséria centenas de milhões de pessoas na China e no Brasil, principalmente. Graças ao sistema financeiro, quase meia centena de países antes estagnados hoje cresce a taxas de 7% ou mais por ano. O aumento do nível e da qualidade de consumo no Brasil, a economia pujante do país e, por conseqüência, a popularidade recorde do presidente Lula se devem a cabeças brilhantes e maquiavélicas de Wall Street que inventaram esses gigantescos instrumentos de liquidez mundial. Por esse prisma, é uma pena que a bolha tenha estourado. Limpar a bagunça vai custar cerca de 1 a 2 trilhões de dólares – o mesmo custo de cinco a dez anos de guerra no Iraque. Quem vai pagar? O contribuinte americano. Mas boa parte disso será recuperada pelo Tesouro americano no mercado – e, a se fiar em operações salvadoras anteriores, com lucro. Finalmente, como vai funcionar o sistema daqui para a frente? Será menor, sem dúvida. No começo, com mais cautela e mais regulação. Depois, ninguém sabe. Com a palavra, Alan Greenspan, ex-presidente do Fed, o banco central americano: "Se um banco concede um empréstimo sem saber se o cliente pode pagar, quem vai saber? O governo? Impossível".

 

Depois da farra

O americano Norman Gall, diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, sugere quatro ajustes para evitar que os mercados produzam novas bolhas de irracionalidade financeira. Seu ensaio "Dinheiro, ganância, tecnologia" foi publicado no Braudel Papers, jornal do instituto, acessível no site www.braudel.org.br.

Qual é o papel dos governos nessa crise?
Os bancos centrais precisam eliminar os juros negativos, para refrear o excesso de demanda e parar a inflação. Segundo indicadores financeiros publicados semanalmente pela The Economist, 24 de 41 países listados mantêm taxas de juros negativas, liderados pelos Estados Unidos, Japão, China, Índia, Rússia, Chile e Arábia Saudita. Cinqüenta países já têm inflação anual acima de 10%. A eliminação dos juros negativos pode ser politicamente difícil para as nações individualmente, mas uma ação coletiva e cuidadosamente explicada de vários governos e bancos centrais a facilitaria.

E as taxas de câmbio?
As taxas de câmbio subvalorizadas têm de ser eliminadas. Se as taxas de juros se tornassem positivas, as taxas de câmbio subvalorizadas subiriam para níveis mais realistas, reduzindo as distorções no comércio mundial e nos fluxos financeiros e refreando a escalada da inflação mundial. Apesar da valorização recente, a taxa de câmbio da China ainda estaria entre um terço e metade abaixo do que seria necessário para o equilíbrio com seus parceiros comerciais. Outros exportadores asiáticos relutam em elevar seus juros, temendo perder competitividade se a China não agir primeiro.

Como regular o mercado financeiro?
É preciso livrá-lo de atividades perigosas e frívolas, como a securitização irresponsável e a proliferação cancerosa de derivativos exóticos. Os contratos de derivativos que podem ser implementados devem ser limitados a instrumentos padronizados, comercializados em bolsas de compensação reconhecidas que assumam a responsabilidade pela execução final dos contratos.

O que os governos dos países afetados pela crise devem fazer?
Respondendo às adversidades econômicas, os governos deveriam lançar programas de modernização da infra-estrutura comparáveis ao New Deal de Roosevelt nos anos 30, para consolidar a estabilidade política no momento em que os tempos difíceis se aproximam, mostrando preocupação com os setores que enfrentam adversidade e projetando esperança para o futuro. O New Deal não foi capaz de pôr fim à Grande Depressão, mas seus projetos de obras públicas ajudaram a sustentar o sistema político. As grandes economias, como Estados Unidos, Brasil, Rússia e Índia, e muitas menores também, precisam urgentemente de melhorias em infra-estrutura.



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