Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 20, 2008

NO DIA EM QUE A TERRA TREMEU...

Especial A segunda-feira negra 

...o turista se encantava com a cidade, o mendigo bebia,
o vietnamita vendia o suco de sempre – a vida seguia 
numa Nova York de tragédias e de glórias


André Petry, de Nova York

Fotos Gilberto Tadday

DE PEIXE E DE TOURO
Chase, o turista americano em Nova York: no pior mês em 
sete anos, ele segue frio como peixe, e perto do touro


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Nesta edição
• A cavalaria salvou o dia
• Cadê a confiança que estava aqui?
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Dustin Chase tem 56 anos, trabalha como conselheiro financeiro no Edward Jones, banco de investimento com quase 7 milhões de clientes, e resolveu tirar uma folga para conhecer Nova York. Chegou no sábado, e, no dia seguinte, o mundo financeiro começou a desabar, com a Merrill Lynch caindo nos braços do Bank of America e a Lehman Brothers indo à lona. Na segunda-feira, Chase, que opera na pequena cidade de Abilene, no estado do Kansas, estava passeando em Wall Street, de bermuda e tênis, na companhia de sua mulher. "Este é meu pior mês em sete anos de trabalho", dizia ele, mas continuava passeando. Ficaria em Nova York até quarta-feira. "Estou adorando a cidade, é muito mais fácil andar e se localizar aqui do que eu imaginava", dizia, ao posar para foto abraçando o enorme touro de bronze, símbolo da força do mercado na maior praça financeira do mundo. Chase é um homem do mercado, modesto e pequeno, mas cuja vida oscila na curva dos gráficos financeiros, e ele está frio como um peixe. Na semana em que a terra tremeu em Wall Street, tudo estava calmo e sereno. Com a calma e a serenidade, diga-se, das cidades que, mesmo sob bombardeio, não deixam de sair à noite para passear.

Em frente ao prédio da Bolsa de Valores de Nova York, não circulam carros desde os atentados de 11 de setembro de 2001. Na rua transversal, o trânsito também está interditado devido a obras de reparo. Assim, com o tráfego exilado ao longe, a Bolsa de Nova York, de onde saem e aonde chegam lufadas tenebrosas de uma crise financeira que pode adquirir proporções tsunâmicas, está cercada por um silêncio interiorano. Lá dentro, não é muito diferente. Com o passar dos anos e das crises, o mercado foi adquirindo meios para conter o pânico. O número de operadores da bolsa, aquela massa de jaqueta escura que grita e se escabela, foi tremendamente enxugado, e eles quase não gritam nem se escabelam. "Há três anos o Bank of America tinha cinqüenta operadores no chão da bolsa. Hoje tem quatro", contabiliza um operador que pede para não ser identificado – em Wall Street, como nas investigações policiais, nos bastidores das guerras e no sexo por telefone, as pessoas não gostam de ser identificadas. "O BankBoston tinha 45 operadores. Hoje tem dois." Com menos gente no chão da bolsa, o tumulto, por maior que seja, é menos cênico. O pregão é suspenso quando a queda é excessiva. Na devastadora crise de 1987, isso não existia, o que dava a impressão de que o fim do mundo não tinha fim.

Agora, não. Royal Walton, 63 anos, sem cônjuge, sem filhos e sem teto há mais de três décadas, passa em frente ao prédio da bolsa com a indiferença produzida por carradas de álcool enquanto empurra seu carrinho de supermercado carregado das bugigangas que cata pela rua. O vietnamita Khanh Le, que gosta mesmo de ser chamado de "Jimmy", tem 34 anos e há nove vende sucos e saladas de frutas em sua banca instalada na calçada em frente à bolsa. Ele sabe que há uma crise "porque as pessoas que chegam aqui só falam disso". Seu movimento, no entanto, não mudou em nada. "A única coisa que mudou é que tem mais jornalistas por aqui", diz o segurança Frederick Perkinson, examinando os pedestres como se fosse superior a todos eles. Perkinson faz plantão à entrada da grade que afasta o público da calçada da bolsa. Não se pode chegar a menos de 5 metros da calçada. Há seguranças e grade, cães e detectores de metal. De novo, herança do 11 de Setembro.

CRISE? QUE CRISE? Royal Walton, 63 anos, empurra seu carrinho de supermercado cheio de bugigangas, indiferente à crise da bolsa (ao fundo)

Nas imediações da bolsa, no entanto, havia uma certa agitação na semana do caos. Agitação de turistas, apenas. Os turistas de sempre. Que tiram fotos do prédio da bolsa, enfeitado com a gigantesca bandeira americana. Que sentam na escadaria do Federal Hall National Memorial. Que fotografam a estátua de bronze de George Washington sobre um pedestal onde se lê que ali, no dia 30 de abril de 1789, ele fez seu juramento como o primeiro presidente dos Estados Unidos. Ali, nasceu o governo americano. Esse governo ao qual, com a crise, os americanos, quase sempre tão adversários do governo, quase sempre tão desejosos de ter cada vez menos governo, agora pedem socorro – e dizem que precisam de mais governo, mais intervenção, mais controle sobre Wall Street. George Washington observa tudo do alto, em silêncio, como se não houvesse nada.

Quatro horas da tarde, pregão encerrado, os habitantes da bolsa começam a deixar o prédio – passam pelo corredor polonês da imprensa, com fotógrafos e cinegrafistas, e não olham para os lados, caminham rápido, simulando ajeitar a gravata. Nada de entrevistas, nada de declarações. O operador Aribean Kirschabaum, que há seis anos trabalha na mesma empresa e há um ano está na bolsa como técnico analista, resolve parar e conversar. Um enxame de jornalistas o cerca. Um pouco constrangido com a súbita notoriedade, ele começa falando timidamente, mas vai ganhando confiança. Resume a crise comparando-a com a devastação provocada pelo furacão Katrina em Nova Orleans há três anos. "A água está na altura dos diques, e os diques estão quebrando", diz, a essa altura já encantado de exibir-se diante dos olhos do mundo. Ninguém entende por que Kirschabaum pode dizer o que pensa e os outros operadores da bolsa se fecham no mutismo dos enlutados. Perderam tudo? Empobreceram da noite para o dia? Não há sinais de que estejam vivendo no reino da desgraça. Mas a uns cinqüenta quarteirões ao norte da Ilha de Manhattan, sob o mesmo céu de um azul brasiliense e um calor de 27 graus, a coisa é outra. Ali, sim, pode-se espiar a silhueta da carranca da crise.

Embicando para as alturas com seus 32 andares, o imponente prédio ocupado pela Lehman Brothers, o quarto maior banco dos Estados Unidos, que acaba de ir à lona, tem três seguranças, um para cada porta giratória. Em frente, um grupo de repórteres e cinegrafistas. Lá de dentro, de vez em quando sai um funcionário, abatido, semblante carregado, nenhuma palavra. Agora, dá para entender. Eles acabam de perder o emprego ou estão prestes a perdê-lo. Vladimir Efroimson sai do prédio carregando uma caixa de papelão e provoca uma chuva de flashes. Caminha rápido. Tenso, acende um cigarro na calçada, ignora pedidos de entrevista e começa a conversar com um amigo – em russo. Uma funcionária, como uma celebridade flagrada à saída da delegacia, deixa o prédio com a bolsa à frente do rosto para não ser fotografada. Outra faz um sinal obsceno com a mão em direção a um fotógrafo, que adora a imagem. "Ficou ótimo, ficou ótimo", exulta. E há esse pedestre, de paletó e gravata, tentando agredir com sua pasta um fotógrafo que aponta sua câmera para um funcionário da Lehman, que leva uma caixa de papelão na cabeça. "Deixem o cara em paz, seus abutres! Ele acabou de perder o emprego!" Nada de mais. O tumulto de gente indo e vindo pelas calçadas na esquina da Sétima Avenida com a Rua 49 logo absorve o entrevero.

MEU NOME É JIMMY O vietnamita Khanh Le, que gosta de ser chamado de Jimmy, há nove anos vende saladas e sucos de frutas em Wall Street

O prédio de 32 andares e imensas telas de vídeo é, ele mesmo, um monumento às tragédias e às glórias de Nova York. Foi construído para abrigar a sede do Morgan Stanley, gigante financeiro que ganhou fortunas com a bolha tecnológica dos anos 90 e agora, com a crise, já pensa em se fundir com outro banco. Mas, assustado com os atentados de 11 de setembro, o Morgan Stanley nem chegou a se mudar para o novo prédio e, num piscar de olhos, vendeu-o para a Lehman Brothers, que, agora, enredada na falência, conseguiu vendê-lo para a Barclays Capital, firma baseada em Londres que, graças à crise, arrematou a pechincha. Talvez os funcionários da Lehman nem percam o emprego. São as quedas e as ascensões de Nova York. Na Corcoran, titã do mercado imobiliário, nem bem saiu a notícia da falência da Lehman já começaram os telefonemas oferecendo casas para vender na região dos Hamptons, balneário a leste de Nova York onde os chiques passam o verão. O mercado, para o bem e para o mal, é rapidíssimo no gatilho.

Wall Street não é só uma grife, é também uma potência. Oferece apenas um em cada vinte empregos em Nova York, mas paga salários tão altos, premia seus funcionários com bônus tão generosos, que quase 25% da massa salarial local vai para o bolso de quem trabalha em Wall Street. Com rendas tão robustas, estima-se que cada emprego no mercado financeiro crie outros três – em bons restaurantes, em revendedoras de carros de luxo, em imobiliárias, butiques de grife, lojas de decoração. Cerca de 10% de toda a receita recolhida pela prefeitura de Nova York vem de Wall Street. Para cada 1 000 empregos que somem no mundo das finanças, a cidade perde cerca de 50 milhões de dólares em receita. Só neste ano, a crise já triturou 25 000 empregos em Wall Street. Há números de sobra para provar a importância visceral do mercado financeiro para a cidade, mas é sempre bom lembrar: essa gente forjada no olho do furacão capitalista não pia fino com qualquer galo e costuma se levantar, crise após crise, com um garbo feito em mármore, duro e frio. Como um peixe. Como Dustin Chase, o turista americano que conheceu Nova York na semana do caos. E abraçou o touro.

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