Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 09, 2008

Veja Entrevista: Pedro de Camargo Neto


A bolha da Rodada Doha

Para o empresário e negociador externo, o agronegócio 
teria muito mais a ganhar se cuidasse das mazelas internas
e parasse de se iludir com soluções externas mágicas


Giuliano Guandalini

Lailson Santos

"A diplomacia brasileira 
apostou todas as suas 
fichas no G20 e em Doha.
E falhou duplamente"

O governo brasileiro quebrou a cara com o fracasso das negociações da Rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). E não apenas por ter negligenciado acordos bilaterais na esperança de que os países ricos diminuíssem de uma só vez os subsídios bilionários. O principal problema foi ter relegado a um segundo plano a solução de mazelas internas bem mais determinantes para o desenvolvimento do agronegócio. Essa avaliação é do empresário e negociador externo Pedro de Camargo Neto, que participou do lançamento da Rodada Doha, na capital do Catar, no fim de 2001. "Nos últimos cinco anos, Doha passou a ser vista como uma espécie de remédio mágico contra as doenças endêmicas da agricultura brasileira. Esse simplismo prestou-se a esconder deficiências internas muito piores que os efeitos do protecionismo de países ricos", diz Camargo Neto. "Se resolvesse as suas fragilidades domésticas, como a vigilância sanitária deficiente, o país ganharia muito mais do que estava posto na mesa em Doha." Camargo Neto foi secretário de produção e comercialização do Ministério da Agricultura (2001-2002). Aos 59 anos, ele hoje preside a Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína (Abipecs).

O que significa o fracasso de Doha? Não é nenhuma tragédia. No Brasil, houve uma glamourização do tema. Doha ganhou uma importância desproporcional ao seu alcance. Durante as negociações, a culpa pelas mazelas agrícolas brasileiras foi convenientemente depositada sobre o protecionismo dos países ricos. Nos últimos cinco anos, Doha foi vista como uma espécie de remédio mágico contra as doenças endêmicas do agronegócio. Esse simplismo prestou-se a esconder deficiências internas muito piores que os efeitos do protecionismo de países ricos.

"Se conseguisse erradicar de vez a febre aftosa, o Brasil poderia elevar em
1 milhão de toneladas suas vendas de carne de porco – o equivalente a dez vezes o ganho potencial que teria 
em Doha"

Que deficiências são essas?Acima de tudo, o controle sanitário frágil e a infra-estrutura deficiente. Veja o exemplo da carne suína. Durante as conversas na sede da OMC, em Genebra, na Suíça, a União Européia oferecia uma cota de 200 000 toneladas ao ano, o que representa 1% do consumo europeu. O Brasil ganharia aproximadamente metade dessa cota, ou 100 000 toneladas do volume oferecido. Se erradicasse de vez a febre aftosa, o país poderia elevar em 1 milhão de toneladas suas vendas de carne de porco – o equivalente a dez vezes o ganho potencial com Doha. Por culpa única e exclusiva do Brasil, hoje não podemos vender um único quilo de carne suína para grandes mercados consumidores como Japão, Coréia do Sul e México. Em relação às carnes bovinas é o mesmo cenário. Prometemos aos europeus rastrear os animais, mas montamos um sistema sem nenhuma credibilidade. Nossas exportações de frutas também são pífias, mais uma vez por motivos sanitários. O sucesso futuro de nossa agricultura não dependerá exclusivamente de negociações comerciais complexas e intricadas, como as da Rodada Doha. Ele ocorrerá com a solução de problemas criados por nós mesmos. Curiosamente, ninguém trata desses aspectos.

Doha, então, não tinha importância? Não quero aqui reduzir a relevância de um eventual acordo. Em Doha, os exportadores de carne bovina, suína e de aves certamente teriam a chance de aumentar a presença no protegido mercado europeu. Havia também a perspectiva de conquistarmos cotas para a venda de etanol na União Européia, além de solucionarmos de vez disputas antigas, como a que abrimos contra os subsídios americanos aos produtores de algodão. Sob esse aspecto, o Brasil e o resto do mundo em desenvolvimento certamente perderam. Mas é preciso pôr fim ao cinismo. Impomos a nós mesmos a maior parte das barreiras.

Como o senhor analisa a atuação do chanceler Celso Amorim e dos demais negociadores do país? Houve um erro claro de estratégia da delegação brasileira nas conversas de Genebra. Saímos enfraquecidos desse episódio. Ao ter assumido a liderança do G20, grupo de países em desenvolvimento criado há cinco anos, o Brasil teria de arcar com o ônus dessa posição. Um verdadeiro líder deve consultar os parceiros e até convencê-los a recuar, se for o caso. O Brasil, no entanto, se antecipou e aprovou a proposta de acordo apresentada pelo diretor-geral da OMC, Pascal Lamy, mesmo sabendo da discordância de alguns de seus aliados no G20. Como resultado, a proposta foi simultaneamente aprovada pelo Brasil e rejeitada pela Índia. Isso diante de todos os negociadores. O que isso significa? Que a diplomacia brasileira apostou todas as suas fichas no G20 e em Doha. E falhou duplamente.

Mas o Brasil não acertou ao se distanciar da intransigência da Índia, da China e da Argentina? Em tese, sim, pois a economia brasileira, cada vez mais diversificada, merece uma representação menos maniqueísta. O país já não cabe na cômoda posição de vítima. Fico com a impressão, no entanto, de que o distanciamento brasileiro retratou mais uma ânsia de fechar logo um acordo, qualquer acordo, mesmo que tímido, do que um amadurecimento. Na pressa, o chanceler Amorim talvez tenha aprovado um texto que deixava os americanos numa situação extremamente confortável. Lamy propunha a mesma redução de subsídios que a negociadora americana, Susan Schwab, oferecera um dia antes. Em um acordo em que se exige o consenso de 153 nações, é necessário que todos estejam igualmente infelizes. Pelo texto de Lamy, os americanos estavam bastante satisfeitos. Assim seria difícil convencer os aliados do Brasil no G20. Falhou Lamy. Falhou mais ainda o Brasil, que ficou esperando que Doha nos alçasse ao Primeiro Mundo.

As conversas em Genebra acabaram marcadas por duas declarações inoportunas do chanceler Celso Amorim. Ele comparou a retórica dos negociadores americanos à do ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels. Disse ainda esperar que não seja necessário um "novo 11 de Setembro" para que as negociações sejam retomadas. Qual foi o impacto dessas gafes? Não imagino que essas afirmações tenham influído nas conversas da rodada de maneira determinante. Mas com certeza não fizeram bem à imagem do chanceler brasileiro. O corpo técnico do Itamaraty é competente. O grande erro foi ter misturado objetivos políticos a negociações comerciais. A rodada da OMC deveria ter como prioridade a liberdade econômica, e não servir de palco a interesses políticos.

Embora o Brasil não tenha fechado nenhum acordo comercial significativo, as exportações do agronegócio triplicaram nos últimos cinco anos. A que se deve esse salto? O setor passou por transformações profundas em seu sistema produtivo a partir de 1990, com a abertura comercial e a eliminação de políticas cartoriais absurdas. No caso do açúcar, o aumento nas vendas externas só veio com o fim do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), que tinha o monopólio das exportações até 1990. São Paulo, a região mais eficiente do mundo na produção de álcool e açúcar, não podia exportar. Era uma situação esdrúxula, supostamente destinada a promover o desenvolvimento do Nordeste. Quando essa barreira caiu, o Brasil tornou-se uma potência no setor. Também foi positivo o progresso no controle da sanidade animal, apesar de não termos ainda nos livrado da febre aftosa. Em 1994, registraram-se mais de 2 000 focos dessa doença. Agora os casos são cada vez mais raros e isolados. Os avanços são inegáveis, mas há muito a percorrer.

"O sistema brasileiro de fiscalização dos animais é uma caricatura do que não se deve fazer. Diante dessa incompetência, fica difícil condenar o embargo europeu à carne brasileira"

Como superar os atuais obstáculos que emperram o aumento das exportações do agronegócio? O setor privado cresceu muito, e rapidamente. Todo o aparato institucional e regulatório ficou obsoleto. Temos governo demais onde não é preciso e pouco governo onde ele se mostra necessário. Para promover as alterações urgentes, têm faltado visão e liderança. Estamos sempre correndo atrás do prejuízo e sem tempo de olhar o futuro. Além disso, prometemos sempre o que não podemos cumprir – um defeito fatal em se tratando de comércio internacional. O atual sistema de fiscalização dos animais, o Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), administrado pelo Ministério da Agricultura, é uma caricatura do que não se deve fazer. O sistema não conta com credibilidade. Há 10 000 fazendas cadastradas e, pelas regras vigentes, todas deveriam ser fiscalizadas pelo menos uma vez ao ano. Isso nunca ocorre. Diante de tamanha incompetência, fica difícil condenar o embargo da União Européia à importação de carne brasileira.

O agronegócio costuma se queixar do câmbio. Mas, curiosamente, o aumento das exportações ocorreu entre 2003 e 2007, quando houve uma forte desvalorização do dólar... Não há como negar que a cotação cambial desfavorável reduz a rentabilidade dos agricultores. Mas isso foi, em parte, compensado pelo forte aumento da demanda dos países emergentes. A China, a Rússia e o Oriente Médio vêm crescendo a um ritmo acelerado. A população desses países passou a consumir mais alimentos, e o Brasil estava preparado para tornar-se um fornecedor de peso. Houve também, obviamente, ganhos na produtividade. Com a mesma área plantada conseguimos hoje colher 60% mais soja do que em 1990. Há duas décadas, produzíamos 4 600 litros de etanol por hectare, e agora o volume alcança 6 700 litros – um avanço de quase 50%. Graças a esses ganhos, resultado de uma pesquisa tecnológica de décadas, os produtores nacionais conseguem contornar dificuldades como o câmbio desfavorável, a infra-estrutura precária e também os subsídios dos países ricos.

Existe uma crítica recorrente segundo a qual as exportações do país dependem cada vez mais de produtos básicos, dotados de baixo valor agregado. O senhor concorda? É uma tremenda bobagem. Agricultura não é extrativismo. Não existe um processo industrial que crie tanto valor quanto a fotossíntese, que, graças a muita tecnologia, transforma energia solar, água e mão-de-obra em alimento. Até a década de 70, o cerrado era tido como uma terra improdutiva. Só foi possível conquistar essa fronteira agrícola com o desenvolvimento científico de novas variedades de soja. Todos os ganhos de produtividade obtidos pelo agronegócio só foram possíveis pelo investimento maciço em pesquisa.

E quais são as perspectivas nessa área? Precisamos de uma nova onda de ousadia e criatividade na pesquisa científica. Vivemos atualmente dos investimentos realizados no passado. Os avanços recentes em biotecnologia têm sido morosos. O país corre o risco de ficar para trás na produção de etanol a partir da celulose. A pesquisa nesse campo tem atraído investimentos bilionários nos Estados Unidos e na Europa, e o Brasil, pioneiro no uso do etanol em automóveis, corre o risco de ter de pagar royalties para importar tecnologia.

Se a agricultura brasileira avançou tanto, por que ainda depende do crédito favorecido do governo? O agronegócio depende cada vez menos do financiamento oficial. Hoje, boa parte do crédito aos produtores é oferecida pelas empresas de exportação. Quem depende do crédito oficial é a agricultura familiar. No que diz respeito à chamada dívida agrícola, um assunto correlato, existe um passivo histórico que não foi devidamente enfrentado. Planos econômicos do passado manipularam o sistema de indexação, descolando o ativo do passivo do agricultor. Um problema semelhante ocorreu com o sistema financeiro da habitação. O desequilíbrio foi empurrado para a frente ano após ano, sem que se alcançasse uma solução definitiva. Criou-se a cultura de postergar esse acerto. Espero que, desta vez, se chegue a uma solução final.

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