Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 02, 2008

Olimpíada Arquitetura As catedrais de Xangai


A cidade mais cosmopolita da China celebra o
capitalismo erguendo colossos de aço e vidro


Mario Sabino, de Xangai

GIGANTES NO MESMO CARTÃO-POSTAL
Da esquerda para a direita, o World Financial Center, de quase meio quilômetro de altura, e a Jin Mao Tower, até há pouco tempo o prédio mais alto de Xangai. Ao lado deles, será erguido um edifício de 580 metros para
a Expo 2010

Em Xangai, são duas as ocupações básicas: fazer dinheiro, muito dinheiro, e construir prédios altos, muito altos. Às vésperas da Olimpíada, espalham-se pelas ruas principais do centro financeiro da China imagens do mascote da Expo 2010, a ser realizada na cidade – o Haibao, um boneco azul, anguloso e de sorriso abobalhado, semelhante aos das campanhas de vacinação brasileiras. A grande feira internacional, cujo tema girará em torno de como melhorar a qualidade de vida nas metrópoles, é uma competição já ganha por Xangai. Tornou-se uma ótima oportunidade de fazer mais dinheiro e justifica que se apresse a construção de mais prédios gigantescos. O maior de todos – até o momento – está com inauguração prevista para antes do início da Olimpíada: o Shanghai World Financial Center, ou SWFC, um colosso de vidro de meio quilômetro de altura (492 metros, para ser exato) e 101 andares. Só não é considerado o mais alto do mundo porque engenheiros de Taiwan usaram o truque de colocar uma antena no Taipei 101, para erguê-lo a 508 metros. Quando souberam da esperteza, os projetistas do SWFC pensaram em aprofundar as fundações, a fim de acrescentar andares que lhe somassem de uma a duas dezenas de metros. Não foi possível. Por que não puseram uma antena lá em cima? Porque a arquitetura é boa demais para ser estragada. O prédio, assim, é o campeão moral da Copa de altura.

De certos ângulos laterais, o SWFC adquire as feições de um obelisco – que se desdobra em retângulo apoiado num dos lados menores à medida que o observador se move em direção à fachada recortada. No topo, há uma enorme abertura, que forma uma espécie de alça. Para além do efeito estético surpreendente, ela tem a função de tornar o prédio resistente a tufões. Dentro da abertura, será estendida uma plataforma panorâmica que vai requerer algum sangue-frio dos visitantes. O gigantismo do SWFC é realçado por ele ter sido construído na calçada em frente à da Jin Mao Tower, até pouco tempo atrás o prédio mais alto de Xangai, e que dominava soberano a paisagem ao redor. Com 420 metros, é um pagode futurista com revestimento de aço. O SWFC, de uma arquitetura despudoradamente americana, agora lhe faz sombra, não importa de onde se olhe. A partir do observatório da Jin Mao, a perspectiva do grandalhão ao lado está para a de um filho pequeno em relação ao pai. Humilhante.

Desde 1992, mais de 3.000 prédios com mais de trinta andares foram construídos em Xangai. Sim, você leu certo: mais de 3 000. É a maior concentração de arranha-céus que existe. O governo teve de conter a fúria dos incorporadores, em 2003, porque o solo da cidade estava afundando sob tanto peso. Mas conter, na China, significa diminuir a velocidade de 300 para 200 quilômetros por hora. Xangai contabiliza, nestes meados de 2008, dez dos 100 edifícios mais altos do planeta. Está empatada com a rival Hong Kong. Para a Expo 2010, quer incluir outro gigante no seu skyline, ao lado da Jin Mao Tower e do SWFC – o Shanghai Center, de 580 metros. Erguê-lo do nada em dois anos é algo inacreditável. Os chineses, porém, são especialistas na arte de transformar o inacreditável em realidade, ao contrário de nós, brasileiros, exímios na frustração de tornar a realidade inacreditável. Pode ser que consigam. Como se não bastasse, eles ainda terão de cumprir o cronograma exíguo na demolição de inteiros quarteirões degradados, numa operação que lembra a que mudou o semblante de partes de Pequim. O complexo da exposição contará com uma área de 5,3 quilômetros quadrados, o equivalente a doze Vaticanos.

Do ponto de vista da logística urbana, arranha-céus prodigiosos são um contra-senso. Concentram trânsito e despendem uma quantidade fabulosa de energia. Mas se está, aqui, no terreno exclusivo do símbolo. Eles são as catedrais do capitalismo – o único deus desta metrópole de oficiais 20 milhões de pessoas – e têm em Xangai a sua nova Roma. Arquitetos dos Estados Unidos e da Europa querem eternizar-se na cidade. E, como são os melhores entre os melhores, o fazem de maneira superlativa na beleza. Não desenham caixotes como os que enfeiam São Paulo. Os americanos são, de longe, os mais presentes no espetado horizonte de Xangai. O SWFC saiu das pranchas de dois escritórios de Nova York (o engenheiro responsável esteve à frente da construção das finadas Torres Gêmeas). A Jin Mao Tower também nasceu em Manhattan. Para ficar em apenas outros dois exemplos que fazem a alegria dos fabricantes de cartões-postais, são projetos americanos o Shanghai Westin Bund Center, cujo topo se abre numa coroa na forma de flor de lótus, e o Marriott Hotel Tomorrow Square, que parece um foguete pronto a ser lançado das proximidades do Parque do Povo, ponto de encontro tradicional dos habitantes da cidade.

A corrida em direção às alturas começou em 1991, com a Torre de Televisão Pérola Oriental, inaugurada quatro anos depois. Com 468 metros, ela tem a sutileza de uma caixa-d’água. O autor do projeto, Jiang Huancheng, inspirou-se num verso de um poema antigo, intitulado Canção da Flauta, que fala de sons de pérolas grandes e pequenas caindo sobre um prato de jade. Para permanecer no gosto chinês pelas metáforas, o resultado foi o barulho de bolas de ferro despejadas sobre uma bacia de alumínio. A Pérola Oriental, apesar de grosseira, é um marco da ressurreição urbana e econômica de Xangai. No início da década de 90, a cidade recebeu o sopro vital do então líder Deng Xiaoping, promotor do "socialismo de mercado" que acordou a China do pesadelo maoísta. Para a contrariedade dos burocratas de Pequim, desconfiados do cosmopolitismo histórico da metrópole ao sul, ele declarou Xangai a locomotiva do país, "a cabeça do dragão".

Com o aval de Deng, os administradores municipais saíram à caça de arquitetos estrangeiros que se dispusessem a desenvolver Pudong, região tomada por favelas, cortiços e descampados. Passados dezesseis anos, vêem-se ali avenidas largas, os mais ousados arranha-céus, conjuntos habitacionais e instituições como o Museu de Ciência e Tecnologia e o Centro de Arte Oriental, duas jóias arquitetônicas. A verdade, porém, é que pouco se concretizou dos planos originais. Os consultores ocidentais, dentro do conceito de humanização dos espaços, torciam o nariz para a construção de prédios altos e propunham limitar o uso de carros. Os donos da casa queriam que os turistas e investidores ficassem com torcicolo, de tanto olhar para cima, e muito monóxido de carbono, o gás do progresso. Pudong ficou de doer o pescoço e avermelhar os olhos, não há dúvida.

O pioneiro Jiang Huancheng, de 70 anos, é dono de um escritório onde trabalham sessenta pessoas. Tratado como arquiteto, ele é engenheiro no diploma. "Mas tento pensar como arquiteto", disse a VEJA. Desde a Pérola Oriental, seus projetos deixaram ao menos de ser abrutalhados – talvez porque da sua equipe atual façam parte arquitetos que pensam como arquitetos. Embora haja no seu portfólio várias modalidades de edifício (inclusive um shopping center na cidade de Guangzhou, em parceria com uma arquiteta do Rio de Janeiro), Jiang Huancheng é o homem das torres – torre, torre, bem entendido. Mostrou à revista três maquetes: a da Jacarta Menara, 558 metros, a ser construída na capital da Indonésia; a da Degraus do Paraíso, 600 metros, comprada por Guangzhou; e a de uma estrutura com espantosos 750 metros. Essa última, afirma ele, só não entrou no concurso público para a Expo 2010 porque seu escritório perdeu o prazo de inscrição. Se encontrar investidores, deverá ser erguida em Tianjin, próxima a Pequim. Jiang Huancheng continua um poeta: "Para desenhar a Jacarta Menara, minha inspiração foram as longilíneas bonecas de madeira daquele país". O fio condutor da torre de Tianjin, por seu turno, é o ideograma para a palavra "povo", em alusão aos confucionismos que pregam a necessidade de união. "Duas pessoas estabelecem uma competição. Três pessoas, um vínculo", discorre, indicando o ideograma que se repete três vezes nos lados de cada andar da maquete. Degraus do Paraíso não precisou de explicação.

Claro Cortes IV/Reuters
A capital do país agora faz bonito com edifícios como o da nova sede da rede de televisão estatal, um Arco do Triunfo distorcido, assinado pelo holandês Rem KoolhSaas e pelo alemão Ole Scheeren. No meio das obras, a administração municipal de Pequim recebeu telefonemas de cidadãos preocupados: "Estão construindo uma coisa muito errada aqui perto: um prédio todo torto"


A Xangai da nova China é uma vitrine do que a modernidade pode oferecer de mais belo e audaz em matéria de prédios, e não só altos ou altíssimos – como o Grande Teatro de Xangai, idealizado por um francês. Não há um Niemeyer que se compare. Definitivamente não há monotonia na sua topografia de concreto e vidro. Há quem se pergunte se ela virá a gestar uma arquitetura chinesa contemporânea digna desse nome. Ou seja, com estilo próprio e capaz de vender-se no exterior. Afora projetos pontuais, como o do Centro de Planejamento Urbano, ao lado do Parque do Povo – um cubo branco coberto por quatro toldos de concreto emborcados –, os arquitetos da terra mostram-se aquém do padrão exibido pelos estrangeiros. Seus edifícios de escritórios e hotéis disfarçam o desenho arroz-com-frango-xadrez por meio da inclusão de antenas, cúpulas e tetos de pagode. A bem da verdade, a referência aos antigos templos budistas é bem mais abundante em Pequim, porque seu ex-prefeito Chen Xitong era um pagodeiro de marca maior. Como foi preso por corrupção, a capital chinesa também se livrou de outros prédios nessa falta de estilo. Pequim não se compara a Xangai, em termos de arquitetura, mas passou a fazer bonito depois dos novos estádios olímpicos e do edifício da CCTV, a rede televisiva chinesa – um maravilhoso Arco do Triunfo distorcido, projetado pelo holandês Rem Koolhaas e pelo alemão Ole Scheeren e tocado pelo engenheiro inglês Ove Arup. O trio está para a arquitetura hodierna assim como Tom Ford, Calvin Klein e Ermenegildo Zegna para a moda masculina. No meio das obras, a administração de Pequim recebeu telefonemas de cidadãos preocupados: "Estão construindo uma coisa muito errada aqui perto: um prédio todo torto."

Quanto aos edifícios de moradia, Xangai é igual às demais cidades do mundo, não interessam o hemisfério e a ideologia. Ou seja, arquitetura é artigo caro para ser fornecido ao povão. A diferença é que, como a escala é de milhões e milhões, a feiúra se intensifica. Do alto dos arranha-céus de Xangai, descortinam-se quilômetros e quilômetros de conjuntos de apartamentos padronizados como as túnicas da época de Mao – panorama que se repete ao longo das estradas que saem da cidade. A acentuar a esqualidez, os mais antigos têm varais de roupas instalados nos peitoris das janelas, o que lhes dá uma incancelável aparência de cortiço.

Na Xangai afluente, há ricos que pagam por projetos residenciais com a assinatura de arquitetos da Itália e da Alemanha. Alguns chineses, como Cheng Zhichun, jovem de 36 anos, procuram adentrar esse filão. Ele mostrou a VEJA o desenho de prédios de sua autoria que se harmonizariam com as casas antigas do bairro da Concessão Francesa. "Ficou bom, não?", perguntou Cheng. Recebeu uma resposta educada, mas a verdade é que falta bastante para que ele e seus colegas se igualem a italianos e alemães. Na mesma Concessão Francesa, um dos quadriláteros mais elegantes é Xintiandi, onde há uma ironia perpetuada em tijolos. Em meio a ex-tugúrios operários, reformados e aglutinados numa espécie de shopping horizontal, cheio de bistrôs simpáticos e lojinhas charmosas, está a casa onde ocorreu o primeiro congresso do Partido Comunista Chinês, em 1921. Fica quase ao lado de uma importadora de vinhos franceses. Lá se pode dar uma espiada em documentos que proclamam o fim da sociedade de classes e na reconstituição, em cera, da cena do jovem Mao reunido com seus camaradas (a coisa tem um quê de Santa Ceia). Se você não pescou a ironia, aí vai o desenho: é como se a sede do PC do B tivesse como endereço a Rua Oscar Freire, em São Paulo, ou a Garcia D’Ávila, no Rio, com todas aquelas patricinhas e peruas andando para lá e para cá, num Brasil oficialmente comunista.

Para a classe média de Xangai, restam, entre outros horrores, prédios que reproduzem toscamente detalhes do neoclássico do Bund. Nessa passarela à beira-rio, localizam-se os magníficos edifícios construídos nos primeiros trinta anos do século XX pelos então todo-poderosos europeus e americanos. Dá para compreender o motivo das imitações baratas: é de tirar o fôlego das almas mais endurecidas. Sobrevivente da sanha destruidora da revolução comunista, que o via como emblema do imperialismo, o Bund, hoje restaurado, abriga bancos, comércio luxuoso e restaurantes esplêndidos, tanto na comida quanto na decoração – a exemplo do Laris, com recepcionistas que parecem as bonecas indonésias de Jiang Huancheng. Separados desse enclave pelo encorpado Rio Huangpu, ficam os arranha-céus de Pudong. Internacional ontem por força do colonialismo, internacional hoje por conta do capitalismo, com uma arquitetura que separa, mais do que em qualquer outra cidade chinesa, as classes sociais num país que as baniu no papel, assim é Xangai. A metrópole em que se constroem prédios altos, muito altos, até onde for possível comprar o céu.

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