Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 09, 2008

Memória Alexander Soljenitsin

Memória
O homem que expôs
o horror soviético

Morre Alexander Soljenitsin, o escritor russo que sobreviveu
às prisões comunistas e revelou, em Arquipélago Gulag, 
toda a insanidade de um regime totalitário

No discurso fúnebre que proferiu em homenagem a Émile Zola, morto em 1902, o escritor Anatole France deixou uma afirmação memorável sobre o autor de Germinal:"Ele foi um momento da consciência humana". Referia-se sobretudo à atuação de Zola na defesa de Alfred Dreyfus, oficial do Exército injustamente acusado de traição, em um caso que dividiu a França no fim do século XIX. As palavras de France caberiam com mais justiça ao russo Alexander Soljenitsin, que morreu de problemas cardíacos em Moscou, no dia 3, aos 89 anos. Soljenitsin bateu-se contra o grande Leviatã do século XX: a máquina totalitária da União Soviética. Sua obra mais celebrada,Arquipélago Gulag, é uma radiografia do estado comunista e de seu sistema de prisões para dissidentes políticos ("Gulag" é a sigla em russo de Diretório Geral de Campos)."Arquipélago Gulag é a maior e mais poderosa condenação de um regime político erigida nos tempos modernos", declarou o diplomata americano George Kennan, profundo conhecedor da política soviética.

Nascido em 1918, um ano depois da revolução comunista, Soljenitsin começou sua trajetória de confrontos com o totalitarismo em 1945, quando ainda servia no Exército Vermelho na guerra contra a Alemanha nazista. Uma carta em que fazia piadas sobre Stalin foi interceptada. Bastou para que fosse condenado ao Gulag. Passou oito anos em prisões e campos diversos, e mais três degredado em um assentamento remoto na porção oriental da União Soviética. No exílio, foi diagnosticado com um tumor maligno no estômago e só com muita dificuldade conseguiu autorização para buscar tratamento em uma cidade maior. Em 1956, foi reabilitado como "patriota soviético" e se estabeleceu em Riazan, cidade próxima de Moscou. Sobrevivera ao exílio e ao câncer e estava prestes a se tornar a grande voz literária da dissidência.

O comunismo vivia então um período de distensão, sob a guarda do premiê Nikita Kruchev, famoso por seu discurso de denúncia dos crimes do antecessor, Joseph Stalin, morto em 1953. Foi graças a esse relaxamento do aparato policial que Soljenitsin pôde publicar, em 1962, a novelaUm Dia na Vida de Ivan Denissovich, relato cru do cotidiano de um prisioneiro do Gulag. Kruchev lera a novela e recomendara pessoalmente a sua liberação à cúpula comunista. "Existe um stalinista dentro de cada um de nós. É preciso extrair esse mal", argumentou. Comparado a Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoievski, Ivan Denissovich transformou Soljenitsin em uma celebridade literária – mas também o tornou suspeito para a linha dura comunista, que voltaria ao poder quando Kruchev foi "aposentado" compul-soriamente e Leonid Brejnev tomou seu lugar, em 1964.

A repressão manteve Soljenitsin sob estreita vigilância, mas ele continuou escrevendo textos, que circulavam em cópias clandestinas. Já era então re-conhecido internacionalmente como um grande escritor, a ponto de ganhar o Prêmio Nobel, em 1970, sob protestos de Moscou. Graças a sua fama, passou a receber centenas de cartas de ex-prisioneiros políticos, material que serviu para a composição de sua obra máxima, Arquipélago Gulag,misto de memórias e ensaio históricoOs números levantados pela obra assombram: nada menos do que 60 milhões de pessoas foram internas em campos de prisioneiros, que, Soljenitsin frisava, existiram desde o início da revolução. O livro não se limitou a atacar o stalinismo, como queria Kruchev: era uma condenação global do comunismo, desde Lenin.

Contrabandeado para fora da União Soviética em microfilme, Arquipélago Gulag teve sua primeira edição em russo publicada em Paris, nos últimos dias de 1973, mas repercutiu de imediato em Moscou. "O arruaceiro Soljenitsin escapou ao controle", reclamou Brejnev em uma reunião da cúpula do Partido Comunista na qual se aventou até a possibilidade de executar o escritor. Acabou prevalecendo a proposta de Iuri Andropov, chefe da KGB e futuro sucessor de Brejnev: em fevereiro de 1974, Soljenitsin foi forçado ao exílio no Ocidente. Passou algum tempo em Zurique, mas acabou se estabelecendo, com a segunda mulher e os filhos, em uma cidadezinha rural do estado de Vermont, nos Estados Unidos, onde trabalhou incansavelmente em um vasto ciclo de romances históricos, A Roda Vermelha.

Soljenitsin não se encantou com a democracia e a liberdade de mercado dos Estados Unidos. Em pronunciamentos polêmicos, condenou aquilo que percebia como a degeneração espiritual do Ocidente – cujos sintomas seriam a televisão e o rock. Patriota ortodoxo, nunca perdeu a confiança na queda do comunismo. A história confirmou sua fé: a União Soviética dissolveu-se em 1991, e Soljenitsin voltou à Rússia em 1994. Seguiu criticando a política russa, mas já não tinha a autoridade pública dos tempos de dissidência. No fim da vida, ensaiou alguns elogios ao autocrata Vladimir Putin. Sua desaprovação aos ataques da Otan contra o genocida sérvio Slobodan Milosevic tampouco lustra sua biografia. Mas são deslizes menores na trajetória de um homem que defendeu corajosamente a dignidade humana ante o terror totalitário. Um momento da consciência humana.

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