Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 16, 2008

Livros Os Sete Chefes do Império Soviético

A liderança da mentira

Um perfil sem ilusões dos sete chefões
da União Soviética – escrito por um militar
que serviu a quatro deles


Rinaldo Gama

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Trecho do livro

Durante décadas, o militar e historiador russo Dmitri Volkogonov – a exemplo dos militantes comunistas de todo o mundo – acreditou na maior falácia do século XX: a integridade do sistema político vigente na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Em 1995, poucos meses antes de morrer, aos 67 anos, vítima de câncer, ele disse em uma entrevista ao jornal The New York Timesque a única coisa da qual se orgulhava na vida era ter sido capaz de alterar seus pontos de vista em relação ao regime a que fora fiel por tanto tempo. Seu derradeiro livro, Os Sete Chefes do Império Soviético (tradução de Joubert de Oliveira Brízida; Nova Fronteira; 514 páginas; 79,90 reais), publicado postumamente, resume com clareza as razões para tal mudança, a partir da análise da trajetória dos homens que comandaram aquela gigantesca e desaparecida potência, de suas origens, na Revolução de 1917, até sua extinção, em 1991: Vladimir Lenin, Josef Stalin, Nikita Kruchev, Leonid Brejnev, Iuri Andropov, Konstantin Chernenko e Mikhail Gorbachev. Não é uma reflexão qualquer, feita em gabinetes acadêmicos: como coronel-general, o autor trabalhou para os quatro últimos líderes da União Soviética. A linha mestra que costura a obra é a idéia de que o pior da experiência soviética já se encontrava no leninismo. Os capítulos referentes a cada chefe, dispostos em ordem cronológica, funcionam como ensaios independentes, porém, olhados em conjunto, não deixam dúvidas sobre a tese central: "Tratava-se de um sistema que incorporava a própria personalidade de Lenin". Stalin – que comandou a União Soviética com mão de aço entre 1924 e 1953, promovendo a morte de possivelmente 20 milhões de pessoas – não seria, portanto, um detrator do "pai da pátria", mas sim um aplicado continuador de seu pensamento.

Pesquisador que ajudou a trazer a público os arquivos secretos da KGB, Volkogonov produziu um livro bem documentado, que ilumina aspectos controversos da história soviética. Examina, por exemplo, as hesitações da política de abertura prometida por Gorbachev. O último chefão soviético nunca levantou a censura a Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenitsin, escritor dissidente morto neste mês. Condenava, assim, um livro que nunca lera. Os Sete Chefes também sublinha traços inusitados da personalidade dos comandantes comunistas – alguns, de um ridículo absoluto, como a obsessão de Brejnev por medalhas, o que levava seus asseclas a inventar condecorações absurdas. As impressões telegráficas que Brejnev deixou sobre um encontro de líderes dos partidos comunistas de todo o mundo, em 1966, guardam uma nota interessante para os brasileiros: o discurso de Luís Carlos Prestes é considerado "OK, mas chato".

Também autor de uma biografia de Stalin já publicada no Brasil, Volkogonov conclui que o inevitável colapso da União Soviética se deveu sobretudo à pretensão de onisciência, onipotência e onipresença do Partido Comunista. Assim, quando Mikhail Gorbachev surgiu no posto mais alto do Kremlin falando em "socialismo de face humana" e repetindo, como mantras, as palavras glasnost (transparência) e perestroika (reestruturação), estava claro que buscava conciliar propostas inconciliáveis: a expressão da liberdade dentro de um sistema totalitário. Não podia dar certo – e o sistema ruiu.



LIVROS

Trecho de Os Sete Chefes do Império Soviético, de Dmitri Volkogonov

Arauto do colapso

Em 2 de novembro de 1977, uma sessão solene do Comitê Central, do Soviet Supremo da URSS e do Soviet Supremo da Rússia teve lugar no Palácio dos Congressos do Kremlin para comemorar o sexagésimo aniversário da Revolução de Outubro. Brejnev havia dito aos seus preparadores de discursos, uma ou duas semanas antes, que não queria falar por mais de cinqüenta minutos. Passara a ter aversão por textos longos.

O pronunciamento, que foi revisto diversas vezes no Politburo, era totalmente devotado ao futuro e recebeu o título de “O Grande Outubro e o Progresso da Humanidade.” “Esta época,” proclamou Brejnev em meio a aplausos orquestrados, “é a época da transição para o socialismo e o comunismo (…) e toda a humanidade está destinada a trilhar tal caminho.”

Brejnev ainda retinha pontos de vista inspirados pelo Komintern sobre o futuro do comunismo. Nos “seus” XXIII e XXIV Congressos do partido, ele expressou a crença no triunfo final da causa de Lênin. Disse no XXIV que o sistema mundial de socialismo era “o protótipo da futura comunidade mundial de povos livres,” e que “a vitória completa da causa socialista em todo o mundo é inevitável.”

Prevendo o colapso do capitalismo e o sucesso do comunismo, Brejnev omitiu o fato de que, sem os capitalistas, a URSS não poderia sobreviver. Cerca de dois meses antes de seu profético discurso no Kremlin, em 30 de agosto de 1977, ele aprovara um relatório rotulado como “De especial importância” e “Para arquivo especial,” assinado pelos gerentes econômicos e financeiros mais credenciados do país. Se tivesse deixado transparecer o que constava daquele relatório, seu discurso no Kremlin teria virado pó. Desde os dias de Lênin, os bolcheviques haviam se tornado mestres na contabilidade de dupla entrada, uma para eles mesmos e outra para “as grandes massas operárias.” Kosygin e os outros autores haviam escrito:

“Em 18 de junho de 1977, o CC e o Soviet de Ministros tomaram a decisão de comprar no exterior 11,5 toneladas de cereais para entrega à URSS em 1977/78.” Agora, continuaram, “surgiu urgente necessidade de comprar no exterior com moeda conversível mais dez milhões de toneladas de grãos (trigo, milho, cevada) para entrega à URSS em 1978. A compra adicional de grãos permitirá atender a demanda na economia nacional, se bem que não completamente.”

Já acostumados com as carências dos recursos nacionais, os autores do relatório levavam em conta uma série de outros fatores: supunha-se que as safras seriam fracas entre os amigos da URSS, e que Polônia, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental e China estavam também se preparando para comprar cereais aos capitalistas. A idéia não era tanto aumentar a produtividade dos campos soviéticos, mas fazer estoques com os grãos estrangeiros ao custo de centenas e milhares de toneladas do ouro.

Talvez Brejnev tivesse isso na cabeça quando declarou no seu discurso que “nossa orientação não é só para as necessidades correntes, mas também para o futuro, notavelmente para nossa política agrícola. Esforçamo-nos por uma solução para o problema dos alimentos, a fim de satisfazer a demanda crescente do país.” Declamando frases tão grandiosas, ele não poderia saber, tampouco o país, que era o arauto de mudanças fundamentais. Quanto mais falava em “sucesso do socialismo” e “influência decisiva da comunidade socialista no desenvolvimento da civilização,” mais evidente se tornava a aproximação da crise total no sistema.

A rigor, a malfadada estagnação não era culpa apenas do incompetente secretário-geral. O sistema em si estava rachando, embora ainda imperceptivelmente. Não possuía suficientes reservas internas para funcionamento apropriado. Havia exaurido a si mesmo. Na década entre os eventos de Praga em 1968 e a entrada no Afganistão, a União Soviética pareceu desfrutar de um período de calma. As anomalias se tornaram regra: as pessoas trabalhavam menos, mas recebiam bônus substanciais; cientistas, desportistas, artistas e membros de delegações desertavam em grandes quantidades; secretários regionais do partido se assemelhavam mais a barões locais; o complexo industrial-militar fazia cada vez maiores exigências para manter a “paridade” com os EUA; o povo se acostumava a dizer uma coisa e pensar outra; Brejnev proclamava que “o futuro pertence ao comunismo,” enquanto seus camaradas e assistentes enviavam ouro para os Estados Unidos, o Canadá, a Argentina e a outros países em troca de cereais, carne e outros alimentos.

O problema de vestir e alimentar a população pendia como uma maldição sobre o regime comunista desde sua concepção, e uma solução não ficara mais próxima no governo de Brejnev. Ele convocou quatro congressos como secretário-geral, do XXIII ao XXVI, e em todos, depois da ritualística descrição das conquistas históricas do socialismo, falou sobre deficiências crônicas. No XXIII: “A produção de certos bens não acompanha a demanda. Não está disponível uma variedade de carnes em local algum da rede comercial. O mercado não recebe quantidades suficientes de bens necessários.” No congresso seguinte, falou pouco sobre os bens cujo suprimento estava muito em falta, e no outro, admitiu que não fora possível alcançar uma melhora na quantidade e na qualidade dos bens e serviços. No seu último congresso, o XXVI, lendo com extrema dificuldade o texto, repetiu: “De ano para ano, os planos não se cumprem para a produção de muitos bens de consumo, especialmente tecidos, roupas de lã, calçados de couro, mobília, televisores. Não houve aprimoramento na qualidade.”

Razões foram apresentadas para os fracassos: safras ruins, mau planejamento, negligência, “subjetivismo” dos chefes anteriores e, é claro, “as ações agressivas dos imperialistas nos EUA que nos forçaram, nos anos recentes, a desviar recursos adicionais significativos para fortalecer a capacidade defensiva do país.” Entre os sucessos do regime, todavia, o XXIV Congresso ouviu que “no período 1969-70, as obras e livros de Lênin excederam 76 milhões de cópias.”

Dois meses antes de morrer, Brejnev voltou de férias na Criméia para presidir uma sessão rotineira do Politburo, algo que fazia cada vez menos em virtude da doença. O aparato do Comitê Central de há muito se conscientizara de que o estado não caminhava para lugar algum, já que sinais partiam de todos os lados indicando crise total. Os auxiliares de Brejnev tentaram colocar pelo menos algumas idéias críticas e construtivas em sua boca.

Sem tirar os olhos do texto que tinha diante de si, Brejnev descreveu seus encontros tradicionais com chefes dos partidos “fraternais” de outros países socialistas. “É desagradável, mas é um fato,” leu, “que diversos de nossos ministros venham sofrendo da doença crônica do não-cumprimento dos contratos de bens com os países socialistas.” Tomou um gole do copo de chá. “Não posso deixar de dizer que existe marcante crescimento da insatisfação com o Comecon [o Conselho de Cooperação Econômica] entre nossos amigos. Também estamos experimentando isso. A raiz do problema está no fato de que o tempo sobrepujou os modelos criados há trinta anos quando a organização foi fundada. (…) Nossos aliados tentam melhorar a coordenação das decisões gerenciais recorrendo a alavancas e estímulos econômicos, e rejeitam a extrema centralização de chefia.”

Essa era a verdade que nosso secretário-geral não estava acostumado a declarar. Mas palavras eram uma coisa; atos, outra bem diferente.

“Nossa economia é gigantesca,” continuou Brejnev. “Tome-se qualquer ministério – é quase do tamanho de um exército. O aparato do governo proliferou. Fizemos muitos erros de cálculo e incorremos em todas as espécies de mal-entendidos.” Para uma solução desses problemas, Brejnev apelou para a velha e fiel fixação bolchevique: “Talvez nosso problema-chave de hoje seja apertar a disciplina. Tanto no estado como entre os trabalhadores. (…) O rigor com a disciplina tem que ter forma abarcante, não por campanhas [individuais]. É provável que tenhamos que formular um decreto sobre isso.”

Tudo aquilo que parecia indício de uma análise sóbria no início do discurso acabou escorrendo entre os dedos da chefia.

A opinião mais penetrante sobre a crise iminente foi dada pelo chefe da KGB, Yuri Andropov. Os arquivos do Comitê Central guardam em “Pastas Especiais” diversos memorandos de Andropov chamando a atenção de Brejnev para os dias difíceis que estavam por vir. O Secretário-Geral apunha sua assinatura e os documentos eram lacrados em envelopes especiais que só ele tinha autoridade para abrir. Não há sinal de reação a tais alertas que começaram por volta de 1975. Brejnev pode ter se reunido com Andropov, a quem muito apreciava, para debater suas idéias e ter decidido que não era necessário fazer comentários escritos sobre a situação. Mas isso é só conjetura. De qualquer maneira, Andropov complementava seus bem-informados alertas com nada mais construtivo que sugestões sobre medidas adicionais rigorosas nos campos da administração e da organização.

Como um dos mais inteligentes e perspicazes chefes do partido, Andropov gozava de uma relação de confiança com Brejnev que chegava à confidencialidade. Possivelmente só Chernenko, o cortesão típico que se antecipava aos desejos do mestre, fosse mais próximo. Em 8 de janeiro de 1976, Andropov escreveu uma carta estritamente pessoal com não menos que dezoito páginas para Brejnev. Começou assim: “Este documento, que eu mesmo escrevo, é endereçado apenas a você. Se você encontrar nele alguma coisa de valor para a causa, ficarei muito feliz, caso contrário, peço-lhe então considerar que ele jamais foi escrito.”

A despeito do aspecto sigiloso do intróito, Andropov nada propôs além do fortalecimento rotineiro do papel do partido para a solução dos problemas do país. O partido, escreveu, precisava armar-se com princípios leninistas testados: unidade de doutrina partidária, organização rigorosa e disciplina de ferro. Ponderou sobre como fazer os quinze milhões de membros do partido trabalharem, “cada um deles,” e como garantir que a filiação não fosse usada “como trampolim para subida nos degraus da carreira.” Instou pelo fim do “palavrório irresponsável, da crítica destrutiva e do desperdício,” realçou o perigo que via no trabalho dos partidos comunistas da Europa Ocidental e detectou “a nódoa democrático-social contra a qual V.I. Lênin lutara tão apaixonada e furiosamente.”

Em diversas passagens, Andropov referiu-se a Khruschev de forma depreciativa, na verdade condenando-o pela transferência de especialistas em agricultura e industriais por profissão para o trabalho no partido, quando o necessário era “liderança política.” Khruschev, segundo Andropov, era contra os “gerentes de negócios” ou “homens de negócios” que, em suas palavras, “começavam qualquer tipo de conversa rabiscando números no papel. Em que, pergunta-se, um líder desses difere, por exemplo, de um gerente americano para o qual o negócio é antes de tudo contabilidade e dinheiro enquanto as pessoas vêm em segundo plano. Nas nossas condições, esses ‘homens de negócios’ estariam trabalhando para eles mesmos.” Andropov concluiu propondo que os secretários regionais do partido fossem transferidos depois de alguns anos para atividade diferente, de modo a se evitar a “estagnação.”

Tais idéias só serviam para empurrar o já conservador Brejnev na direção de um modo de pensar bolchevique ainda mais ortodoxo. Andropov e outros como ele podiam ver e sentir o aprofundamento da crise, mas só conseguiam sugerir soluções leninistas ultrapassadas e desacreditadas.

No final da era Brejnev, diversos de seus associados enxergaram a necessidade de mudanças. Mesmo assim, até o inteligente Andropov viu salvação em ressuscitar, “dentro de limites razoáveis,” as antigas práticas bolcheviques de administrar o país. Ele revelou sua nostalgia em relação aos velhos métodos ao se referir ao partido por sua denominação original de bolchevique. Na sua opinião, bolchevismo significava luta implacável contra “oportunismo político, acomodação, afrouxamento e mentalidade confusa.”

O regime conseguiu retardar o colapso por meio do desperdício sistemático e da liquidação de quantidades colossais de gás, petróleo, ouro e outros recursos naturais do país, mas isso não podia continuar indefinidamente. Eram essenciais decisões responsáveis para alteração de fundo. A chefia do partido, contudo, no demonstrava a menor disposição para tomar tais decisões. Os registros do Politburo não contêm uma só palavra de crítica ao Secretário-Geral por suas inatividade e incapacidade. Cada membro só se preocupava com seu bem-estar, e não com o do estado e do povo.

As reflexões de V.I. Boldin, membro antigo do Comitê Central, merecem ser citadas por serem relativamente objetivas: “É verdade, Brejnev tinha seus pontos fracos, e havia coisas surpreendentes e outras detestáveis. Por que, então, todos silenciaram, jubilosos e reverentes? Onde estavam os chefes cujo dever era falar a verdade sobre a situação tanto para o chefe decrépito como para o Comitê Central e para o povo? Não foi esse bando de covardes, que detinha o poder no centro e nas localidades, que levou nosso país ao impasse, e não deveriam eles ser responsabilizados pelo que aconteceu com nosso grande poder? Só com Brejnev morto é que todos começaram a ultrajar seu ídolo, tentando mostrar como eram corajosos. Que grande carência de princípios e pobreza de espírito eles deviam ter para permanecerem calados e esconderem a verdade do povo!”

Boldin estava certo, mas a culpa não era dos velhos, e sim defeito orgânico do sistema. No cume da pirâmide esteve sempre a imagem do primeiro chefe, imune à crítica e à reprovação. Outros chefes foram expostos ao ridículo depois de mortos, mas Lênin foi tão necessário morto aos seus sucessores quanto o fora vivo. Nem Gorbachev fugiu à tradição. Num pleno do partido de 21 de outubro de 1987, o último secretário-geral não perdeu a oportunidade de alfinetar Brejnev: “Provei do estilo de trabalho de Leonid Ilyich Brejnev em seus últimos estágios. Sei de tudo, camaradas. Foi o infortúnio de nosso partido.” “Sabia de tudo,” mas demorou bastante antes de dizer alguma coisa sobre aquilo.

De fato, a partir de meados dos anos 1970, Brejnev passou a não tomar parte ativa seja nas questões do partido seja nas do estado, mas ainda queria aparecer todos os dias nas telas da televisão. O resultado foi que todos, no país e no exterior, podiam acompanhar seu lento declínio, o esforço que fazia até para descer uma escada ou levantar o pesado volume em Viena que continha o Tratado SALT– 2. De há muito sabia-se em Moscou que, na retaguarda da coluna de limusines pretas que acompanhavam Brejnev em suas cada vez mais raras visitas à capital, ia um carro com equipamento ressuscitador. O Comitê Central mandou que uma equipe de médicos pessoais altamente qualificados estivesse sempre próxima do local aonde o chefe fosse.

Mesmo assim, Brejnev continuava se considerando indispensável devido a sua “grande experiência e sabedoria.” Não percebia que um sábio, com entendimento do passado e antevisão do futuro, não se vê como centro da existência, e sim tem uma idéia objetiva a respeito de si mesmo. Mas Brejnev não possuía tal capacidade. O andar arrastado, o discurso desconexo, os movimentos desgraciosos e a total inaptidão para entender qualquer coisa tornaram-se objeto de piedade nacional e motivo de anedotas cruéis.

Em 1982, ano de sua morte, Brejnev conseguiu fazer ainda algumas viagens pelo país. Quando passava sob uma plataforma, durante visita a uma fábrica de aviões em Tashkent, em março, a estrutura desabou sob o peso dos trabalhadores que estavam em cima dela. As pessoas em torno de Brejnev ainda tentaram protegê-lo das vigas que caíam, mas a clavícula do chefe resultou quebrada. Brejnev assustou-se bastante e a tensão causada em seu coração e na circulação do sangue foi considerável.

Em 28 de outubro, duas semanas antes de falecer, Brejnev ainda reuniu forças para, com grande dificuldade, “pronunciar um discurso” no Kremlin diante do Estado-Maior do Comando Supremo do Exército Soviético. E, no grande feriado do calendário bolchevique, 7 de novembro, quando a Revolução de Outubro era comemorada com a devida cerimônia, Brejnev postou-se de pé no Mauso292 léu durante todo o desfile militar e a parada cívica. Usando calçados aquecidos, roupas de baixo confeccionadas em lã e quase idênticos chapéus com pêlo de marta, os idosos chefes flanquearam Brejnev e acenaram debilmente com as mãos enluvadas para as “massas jubilosas” que se sucediam. Naquele dia, lá estavam de pé no Mausoléu o então incumbente e os três futuros secretários-gerais: Brejnev, Andropov, Chernenko e Gorbachev.

Nos seus últimos anos, uma das excentricidades de Brejnev foi sua preocupação com o peso. Começava o dia pesando-se e se enervava ao mais leve acréscimo, como se o controle do peso fosse a resposta para todas as suas enfermidades. Adorava caminhar e nadar, mas tais exercícios não impediram a rápida deterioração de sua saúde. Sofria de insônia e começou a tomar pílulas para dormir em doses crescentes, e acabou viciado. Como relembrou seu chefe da segurança, o general V. Medevedev, um dos membros do Politburo aconselhou certa vez Brejnev a tomar os remédios com zubrovka, uma vodca aromatizada. Segundo Medvedev, foi a zubrovka que agiu como narcótico. Brejnev não bebia muito daquela mistura, porém, no seu sistema depauperado, ela funcionou como depressivo. Ele já fora acometido de ataques do coração, derrames e outras doenças. Ademais, ex-fumante, Brejnev tinha verdadeira paixão pelo cheiro da fumaça do tabaco, e o general Medvedev relata que por vezes, no meio da noite, ele e seus assistentes tinham que acender cigarros e ficar “fumigando” o adoentado chefe enquanto ele permanecia deitado.

Depois do acidente em Tashkent, o estado de saúde de Brejnev rolou rapidamente ladeira abaixo. Ele ainda fazia grande esforço para aparecer em desfiles e cerimônias, mas todas as questões rotineiras foram delegadas a Chernenko.

A véspera do falecimento foi igual à maioria dos outros dias. Ele voltou de Zavidovo depois do “tiro” e foi para a cama após o jantar, embora não tivesse assistido aos últimos noticiários como normalmente fazia. Na manhã seguinte, por volta das nove horas, Medvedev e Sobachenko foram acordá-lo e o encontraram morto na cama.

Respiração artificial, equipe de ressuscitação e ajuda do acadêmico Chazov não adiantaram. O primeiro membro do Politburo a ter notícia do fato e também o primeiro a chegar foi, é claro, Andropov. Medvedev lembrou-se de que, depois de relatar a Andropov o que acontecera, o chefe da KGB permaneceu perfeitamente calmo e fez “perguntas desnecessárias e desagradáveis.” A morte de Brejnev não foi surpresa para ninguém.

O país estava praticamente parado, pois a estagnação asfixiara todas as esferas da vida. No último Congresso do partido de seu período de governo, o XXVI de 1981, Brejnev começou seu discurso com as seguintes palavras: “Camaradas! O novo Comitê Central nomeado pelo Congresso acaba de reunir-se em seu primeiro pleno. Permitam-me relatar seus resultados. No primeiro pleno do Comitê Central, que transcorreu numa atmosfera de excepcional unidade e solidariedade, os órgãos diretores de nosso partido foram eleitos por unanimidade. O pleno indicou, também por unanimidade, como secretário-geral do Comitê Central do PCUS, o Camarada L.I. Brejnev.”

Naturalmente, todos se ergueram para a tradicional “tempestade de aplausos.” Brejnev evidentemente não sentiu o menor desconforto pelo fato de, a despeito de se encontrar impotente por inteiro, ainda ocupar o cargo mais elevado do país, e fez questão de anunciá-lo pessoalmente aos delegados. Os valores morais mais elementares tinham sido totalmente desprezados. Brejnev e os outros chefes senis ao seu lado haviam se transformado em símbolos da decadência, declínio e erosão do sistema.

Dezoito meses mais tarde, ele estava morto. Enquanto muitos no país saudaram a notícia com alívio, os idosos do Politburo ficaram alarmados. A pergunta que não saía de suas cabeça era: quem assumiria o primeiro lugar dentre eles? O lobby industrial-militar também estava inquieto, já que fora o favorito de Brejnev. No país todo, alguns ousaram especular se alguma coisa positiva poderia agora começar a emergir. A nação entrou em longo período de luto. Parecia que o próprio fundador do sistema estava sendo enterrado, não apenas seu quarto chefe.

Uma sessão especial do Politburo foi convocada no dia em que Brejnev faleceu, na qual choveram os elogios usuais, rebaixando ainda mais o vocabulário da louvação: ele foi “um homem da maior autoridade (…) simplicidade encantadora (…) talento excepcional e chefe extraordinário.” Brejnev morreu na manhã de 10 de novembro, porém, na melhor tradição bolchevique, foi decidido “escurecer a foto” anunciando-se que fora no dia 11 às 11 horas da manhã. O luto oficial duraria três dias, de 12 a 15 de novembro. As escolas não tiveram aulas no dia do enterro, houve salvas de canhão, sirenes soaram por cinco minutos, e assim por diante.

Por uma ou duas semanas, o povo ainda falou de Brejnev por puro hábito, e então o chefe desapareceu de sua vida, sem amarguras ou tristezas. Para falar a verdade, o Politburo debateu, uma semana após a morte, a respeito de um item especial da agenda: “Sobre a Imortalização da Memória de L.I. Brejnev.” Diante deles, havia uma resolução preparada. O primeiro a falar foi, é óbvio, o novo secretário-geral. Andropov fora “eleito,” por indicação de Chernenko, umas dez horas depois do falecimento de Brejnev:

Andropov: Tenho alguma dúvida em redenominar a cidade de Zaporozhie [Ucrânia] para Brejnev. Por quê? Primeiro, porque seria desejável dar o nome de Brejnev a uma cidade na [República Federativa Russa]. Segundo, do ponto de vista histórico, Zaporozhie não é particularmente adequada. É associada com Zaporozhian Sech [Hoste Cossaca], com os distúrbios cossacos etc. Talvez fosse melhor darmos o nome de Brejnev à cidade de Naberezhnye Chelny. Não que eu pense em dar o nome de Leonid Ilyich à estação de lançamento espacial. Não devemos associar o nome de Brejnev a foguetes, e a estação significa exatamente isso. A mim parece que o melhor é dar o nome de Leonid Ilyich à Cidade Estrela no distrito Shchelkovsk da região de Moscou.

Tikhonov: Apóio as sugestões do Camarada Andropov, e também acho que seria certo dar o nome de Leonid Ilyich, por exemplo, à Usina Hidrelétrica de Nurek [no Tadjiquistão]. Talvez devêssemos igualmente dar o nome de Brejnev à mina de carvão de Raspad no oblast de Kemerovo?

Andropov: Houve recentemente um grande acidente em Raspad, muitas pessoas morreram. Talvez não devêssemos incluir o local na lista.

Tikhonov: Está bem. Talvez possamos dar o nome de Leonid Ilyich ao quebra-gelo Arktika.

Andropov: Concordo.

Tikhonov: E dar o nome de Leonid Ilyich à Siderúrgica de Oskol. (…) E, ao renomearmos praças, devemos incluir a cidade de Kiev.

Ustinov: Poderíamos também dar o nome de Brejnev para um transatlântico de passageiros e, enquanto se espera, o nome poderia ir para uma embarcação fluvial.




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