Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 16, 2008

A infantilização nas telas

O ataque da "criança interior"

Zohan, sobre um agente israelense que quer ser
cabeleireiro, seria uma ótima comédia se não fosse
tão pueril. Não se trata de um caso isolado: cada vez
mais, a infantilização é a dieta da platéia


Isabela Boscov

Montagem sobre ilustração de Atílio com fotos de divulgação

PARA CRIANÇAS GRANDES
Will Ferrell, como um marmanjo criado por Papai Noel, Batman, que protagoniza o filme mais sério da temporada, Sandler, como o pueril Zohan, e Harry Potter, que os adultos encamparam: não, eles não representam o fim da civilização. A não ser que só se possa escolher entre eles


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• Trailer

Em Zohan – O Agente Bom de Corte (You Don’t Mess with the Zohan, Estados Unidos, 2008), desde sexta-feira em cartaz no país, o comediante Adam Sandler é um superagente antiterrorismo israelense que sonha, na verdade, ser cabeleireiro em Nova York. O filme tem momentos hilariantes – e outros (muitos) em que falha de maneira tão nua que a platéia chega a ranger os dentes de constrangimento. O que separa uns dos outros é uma linha tênue. O humor de Zohan é invariavelmente pueril, mas às vezes na medida certa e, em outras ocasiões, pueril demais. Não que se trate de um caso isolado. Durante toda a alta temporada do cinema americano (que hoje ocupa quase metade do ano), não se acha um lançamento que não tenha super-heróis, não seja um desenho animado ou não se inspire em games, quadrinhos ou seriados. Quem quiser ver um filme sério tem de assistir a Batman – O Cavaleiro das Trevas – que tem um super-herói e é adaptado de um quadrinho. Em meados dos anos 70, quando Steven Spielberg e George Lucas colocaram o público adolescente no centro das preocupações contábeis de Hollywood comTubarão e Star Wars, falava-se na juvenilização do cinema. Hoje, por comparação, a temporada de verão de 1977 pareceria bergmaniana.

A palavra com que se definem as mazelas da cultura, agora, é ainda mais acusadora que juvenilização – é infantilização. A crítica cultural, sempre à procura de um judas para apedrejar, recentemente elegeu esse como o fenômeno que vai levar à derrocada a civilização ocidental. Ensaístas detectam sintomas graves de infantilização em todas as facetas da vida contemporânea. Fala-se da infantilização da educação, dos idosos, da imprensa, das campanhas políticas, do paladar, dos mercados e até dos bichos domésticos. Se o diagnóstico está em toda parte, é porque o problema também está. A não ser, claro, que não se trate necessariamente de um problema.

Tomada caso a caso, a puerilidade está longe de constituir uma ameaça ao que quer que seja. Ser infantil, no sentido de ser bobinho, é o que faz o deleite de coisas como Um Duende em Nova York,em que Will Ferrell vive um grandalhão criado pelo Papai Noel para, justamente, comentar como hoje os adultos têm certa dificuldade em crescer. Ser infantil no sentido de ser irreverente também pode ser ótimo, como o próprio Zohan demonstra nos seus momentos mais felizes. Sua sátira do conflito no Oriente Médio, por exemplo, quase sempre funciona: o serviço de atendimento telefônico do Hezbollah arrisca e acerta ("digite 1 para organizar um atentado, digite 2 para comprar explosivos") e o comercial da cadeia de lanchonetes do superterrorista Phantom (John Turturro), que termina com o slogan "os Estados Unidos são o Grande Satã", é delicioso. Já ser infantil no sentido de ser regressivo é menos cativante. Por exemplo, identificar-se demais com os conflitos de Harry Potter tendo já ultrapassado a puberdade. Ou, de novo em Zohan, insistir – e insistir, e insistir mais uma vez – que coisas como homus (tanto a palavra, presume-se que por lembrar "homossexual", quanto a pasta de grão-de-bico em si, por sua consistência) são engraçadíssimas.

Os críticos mais apocalípticos têm razão em um aspecto, que o cinema americano hoje ilustra à exaustão. O problema não é que alguns adultos se recusem a escapar da órbita da infância, o que é escolha estritamente de foro pessoal; o problema está na quantidade de gente capturada para essa órbita, e na disposição com que a indústria cultural atende esses fregueses – que são os que mais saem de casa, mais compram e mais pagam. Por causa do peso estatístico da platéia que prefere esse cardápio, o restante da clientela se vê cada vez mais sem uma alternativa dietética à qual recorrer. Zohan, Batman e Harry Potter, enfim, não representam o fim da civilização. A não ser que só se possa escolher entre Zohan, Batman e Harry Potter. Aí sim é preciso soar um alarme e admitir que a cultura, como um todo, pode estar no caminho da regressão.

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