Aparentemente, os trâmites legais estavam sendo observados. No entanto, a quantidade de decretos presidenciais e ministeriais, portarias de órgãos estatais, resoluções e instruções normativas vinham expondo um Poder Executivo cada vez mais ávido em legislar, como se ele fosse a fonte da própria lei, relegando o Poder Legislativo a uma posição essencialmente subalterna. Nesse sentido, portarias e instruções normativas da Funai, do Incra e do Ibama terminaram conferindo a esses órgãos um imenso poder, sobrepondo-os, inclusive, à Câmara dos Deputados e ao Senado.
Baseada numa profusão de atos administrativos editados por ela mesma e fora de qualquer controle, a Funai, sob o manto da justiça social, deixou transparecer o seu pouco apreço pelo direito de propriedade e, por meio deste, pelo ordenamento constitucional do País. A partir do momento em que ela decide identificar e demarcar partes inteiras de Estados brasileiros, eliminando cidades e desconhecendo os direitos inerentes a uma sociedade livre, como o direito à propriedade, a Funai se coloca numa posição equivalente à do Senado brasileiro. E passa a interferir diretamente na vida político-constitucional de uma entidade federativa, tratando-a como um ente que pode ser simplesmente tutelado.
Atos administrativos constituem uma legislação infralegal, que tem amparo constitucional, especificando para casos particulares a aplicação de leis aprovadas pelo Congresso Nacional. Seu escopo é, por assim dizer, limitado pelas condições de seu uso, não podendo ultrapassar essas suas condições de existência, sob pena de se tornarem propriamente inconstitucionais. Haveria uma usurpação de outras funções e mesmo de Poderes republicanos se viessem a valer como expressão direta de artigos constitucionais ou de leis propriamente ditas. No entanto, é isso que está ocorrendo no Brasil, com atos administrativos que legislam sobre a propriedade e sobre entidades federativas de uma maneira que as inviabiliza. Presidentes e superintendentes de órgãos como Funai, Ibama e Incra agem como se fossem os legisladores deste país.
No caso específico da Funai, relativo aos Estados de Roraima e Mato Grosso do Sul, presenciamos como portarias, resoluções e instruções normativas, amparadas, por sua vez, em decretos, estão redesenhando geograficamente o País, retirando as competências administrativa, jurídica e política desses Estados e as transferindo para a União. Observe-se que a instância republicana que constitucionalmente teria poderes para um reordenamento desse tipo seria o Senado brasileiro, e exclusivamente ele. Ora, o que faz a Funai? Coloca-se na posição do Senado, interferindo diretamente na vida desses Estados, retirando imensas áreas de sua área de competência e de poder. E como o faz? Por meio de atos administrativos, numa multiplicidade de portarias, resoluções e instruções normativas, como se fossem leis equivalentes às do Congresso Nacional.
Atos administrativos da Funai efetuam uma transferência de domínio de áreas estaduais que passariam a ser novamente áreas da União, que, por sua vez, as disponibilizaria para o uso dos índios. É como se a União, depois de recuperar esse domínio, transferisse essas áreas para a posse indígena. Ora, reiteremos, a União não tem o poder de efetuar essa transferência de domínio, sendo o Senado a única instituição que poderia fazê-lo. E isso depois de um longo processo legal, que passa por uma ampla discussão, estando os dados da questão à disposição das partes envolvidas, que fazem valer os seus direitos e exercem o direito ao contraditório em todas as partes do processo. A Funai, porém, age prescindindo de todo esse trâmite constitucional, democrático, como se fosse um verdadeiro Poder Constituinte.
Presidentes e superintendentes de órgãos estatais são cargos de confiança, à disposição do governo de plantão. Os escolhidos para exercer essas funções são removíveis a qualquer momento e sua permanência no cargo depende de ministros e do próprio presidente da República. São pessoas que normalmente nem fazem parte dos quadros dessas instituições, tendo sido nomeados para essas funções por injunções partidárias e ideológicas. No entanto, tudo o que fizerem durante esse período mediante atos administrativos permanece. Eles são transitórios, mas suas obras e medidas, não.
Temos observado, nos últimos anos, que a escolha dos presidentes e dos superintendentes estaduais desses órgãos estatais obedece a critérios propriamente ideológicos, sendo eles oriundos dos ditos movimentos sociais, que funcionam como verdadeiras organizações políticas. Trata-se do MST, da Comissão Pastoral da Terra, do Conselho Indigenista Missionário, entre outros, que adotam posições claramente contrárias ao direito de propriedade, à economia de mercado, ao Estado de Direito e à democracia representativa. Em documentos dessas pastorais, os seus santos não são os da Igreja, como Santo Agostinho ou Santo Tomás de Aquino, mas Che Guevara e Fidel Castro. Livros de cantos e sermões estampam as figuras dos "santos" dessa "nova Igreja", como se estivéssemos diante de uma nova "aliança". Estão imbuídos de uma concepção fortemente contrária ao direito de propriedade e ao próprio pacto federativo, procurando reviver as experiências socialistas radicais malsucedidas do século 20.
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
E-mail: denisrosenfield@terra.com.br