Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 17, 2008

FERREIRA GULLAR Notícia de um assalto inusitado



Havia necessidade de expressar o momento, quando um cheiro de jasmim atacou-me

CERTA noite, ao sair do prédio onde mora a Cláudia, fui surpreendido -seria melhor dizer agredido? assaltado?- por uma onda perfumada que me arrebatou: era o perfume que, como uma espécie de gás, emanava das flores de um jasmineiro postado ali, a poucos passos do portão do edifício.
Aturdido e inebriado, arranquei do jasmineiro um punhado de flores e, chegando-as ao nariz, aspirei-lhes avidamente o aroma que, para minha surpresa, revelou-se selvagem e quase me envenena. Embriagado, caminhei até o carro, nele entrei, atirei as flores sobre o banco ao lado e parti na noite, como não fosse para casa.
Mas fui e, ao chegar, depus sobre a estante da sala as brancas flores que já não exalavam tanto odor. Era óbvio que daquela inusitada aventura, nascesse um poema. E foi o que ocorreu, mas não naquela noite, que já havia sido suficientemente avassaladora.
Na manhã seguinte, sentei-me para escrever o poema que deveria expressar a aventura vivida na noite anterior, num jardim da rua Senador Eusébio, no Flamengo. Tinha diante de mim um papel em branco. Sim, e agora, o que fazer? Por onde começar? Não sabia. Tudo o que havia era uma necessidade de, com palavras, expressar aquele momento quando um cheiro de jasmim atacou-me e aturdiu-me, como um assaltante vaporoso surgido da treva.
O poema, sabe, nasce do espanto, isto é, de um instante em que o enigma sempre não explicado e oculto da existência se põe à mostra. E então vemos que todas as explicações não explicam tudo, não explicam o que o cheiro de um jasmineiro nos revela, de repente, de noite, num jardim do Flamengo.
Até certo ponto, por seu caráter inusitado, o poema é uma notícia: notícia de um fato fora da História mas que pertence a ela, e que o poeta, como um repórter bêbado, quer dar a conhecer ao mundo, um testemunho: um cheiro de jasmim atacou-o, de súbito, num jardim aparentemente seguro, às 11h50 de uma noite de quinta-feira.
No entanto, dito assim como notícia, a ocorrência não chega a ser um poema. Seria, quando muito, uma nota na página policial do jornal, assim: "jasmim agride cidadão desavisado, no Flamengo". Caberia, na nota, uma referência ao policiamento ineficiente do bairro pelas autoridades competentes.
E não haveria exagero, se se leva em conta que, quando saí do prédio e fechei o portão, mal desci os dois degraus até o chão de terra, o assaltante, embuçado no jasmineiro -e que era o próprio jasmineiro- saltou sobre mim, como sombra, ou melhor, como aroma, e me agrediu nariz a dentro. Um assaltante disfarçado de arbusto, agindo impunemente num bairro residencial constitui de certo modo um "furo" jornalístico. E nisso o poema se assemelha à notícia, frutos ambos do ineditismo e do espanto.
Mas não se escreve um poema como se escreve uma notícia, com lide e sublide, tendo por objetivo principal relatar o ocorrido, de maneira o mais impessoal possível, com total isenção e sem ambigüidade. Já no poema, muito pelo contrário, o autor se confunde com o que diz, mistura-se com o fato, de tal modo que não se distingue o ocorrido do imaginado. O poeta, na verdade, não informa -inventa; não instrui o leitor, confunde-o deliberadamente, para deslumbrá-lo.
E por que inventa e confunde? Porque o perfume do jasmim -qualquer perfume- é intraduzível em palavras, e é o perfume -a iluminação, na noite, pelo olfato- que o poeta quer dar no poema, ou quer, melhor dizendo, fazê-lo exalar no teu dia, leitor, já não através do nariz mas da boca, ao lê-lo. Quer te dizer o indizível. E ali está ele, diante da página em branco, onde tudo pode acontecer mas, onde, por ora, nada acontece: apenas o silêncio anterior à fala.
Mas, se o perfume não se traduz em palavras, o que dizer com as palavras? O que há a dizer, de fato, ele não sabe, já que ainda não o disse: é só vontade, impulso indefinido. Assim, antes de ser escrito, o poema é apenas uma difusa intenção, não existe e pode nunca existir. Como a palavra não diz o aroma, escrevê-lo é um jogo de probabilidades, de necessidade e acaso, que começa quando a primeira palavra é posta na página em branco. Ela reduz a probabilidade, que era infinita, ao dar início a um discurso possível e não sabido.
Essa primeira palavra, que poderia ser outra, deflagra a invenção do poema, a aventura imprevisível de escrever o impossível que o poeta dará por finda arbitrariamente. E assim o cheiro do jasmim, que não está nele, tornou possível inventá-lo, como a expressão da ausência do vivido, ou uma de suas possíveis presenças.

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