Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 02, 2008

Fraude Médico preso por furar a fila dos transplantes

Fraude
Um poder de vida ou morte

Médico que chefiou a central de transplantes do Rio de Janeiro
é preso, acusado de burlar a ordem das cirurgias de fígado.
O caso mostra que é urgente apertar a fiscalização e dar
transparência ao sistema de captação e doação de órgãos


Silvia Rogar

Marcelo Piu/CPDOC JB/Folha Imagem

DUPLA AÇÃO Joaquim Ribeiro chefiou por quatro anos a central de transplantes e a equipe que realizava cirurgias na UFRJ: poder demais e controle de menos

O médico Joaquim Ribeiro Filho foi acordado e preso em sua casa, na quarta-feira passada, no Rio de Janeiro, por uma operação da Polícia Federal. Com mestrado e doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ele comandou, até setembro passado, a equipe de transplantes hepáticos do Hospital Clementino Fraga Filho, da UFRJ. Entre julho de 2003 e março de 2007, acumulou esse cargo com o de coordenador da central estadual de transplantes, responsável por controlar a inscrição na lista de espera de quem precisa de um órgão e por designar as doações de acordo com prioridades regulamentadas pelo Ministério da Saúde. São dois dos cargos mais importantes que um profissional especializado em transplantes pode ocupar no estado. Exatamente por isso é tão grave a acusação que pesa sobre Ribeiro. Depois de cinco anos de investigação pela PF, o médico foi denunciado pelo Ministério Público Federal, acusado de desvio de órgãos para favorecer pacientes inscritos na fila de espera por um fígado. Ribeiro foi recolhido ao presídio de Bangu 8. Outros quatro médicos de sua equipe, também denunciados, estão em liberdade.

Há ainda denúncias de que os pacientes beneficiados desembolsaram até 250 000 reais. Não existe prova de que o médico tenha recebido propina. Os casos que envolvem pagamento são de cirurgias realizadas ou programadas para a Clínica São Vicente, uma das mais conceituadas e caras do Rio. As quantias podem, então, incluir as despesas com hospital. É algo que só o curso da investigação poderá dizer. O que se pode afirmar até agora é que o médico se transformou numa espécie de dono do sistema de transplantes de fígado no Rio, onde existem apenas três equipes credenciadas para esse tipo de cirurgia. Em resumo, o trabalho de Ribeiro na UFRJ era fiscalizado por um órgão que tinha ele próprio no comando – uma situação não recomendada em qualquer área. Tornou-se ainda mais complicada por ter à frente um profissional que compra brigas. "Ele tem uma personalidade combativa, mas sempre cumpriu as regras", diz a advogada de Ribeiro, Simone Kamenetz. Uma conversa telefônica interceptada pela PF mostra quanto esse limite é tênue. Nela, um hepatologista da UFRJ define o médico da seguinte forma: "Ele acha que é o dono do órgão, não quer respeitar a fila, quer dar a quem ele acha que merece mais". Eleger por conta própria quem deve ser beneficiado na luta pela vida é brincar de Deus. A denúncia do MP indica que, ao menos três vezes, Ribeiro teria agido dessa forma. Outros dez casos foram apurados pela polícia e, depois que o escândalo veio à tona, mais denúncias surgiram.

Otavio Dias de Oliveira
UM SISTEMA PRECÁRIO Falta de infra-estrutura de transporte é uma das causas da longa espera por um transplante

A espera por um transplante é uma situação que envolve pacientes muitas vezes à beira da morte. Para agravar a aflição, as filas obedecem a critérios complexos. Consideram fatores genéticos, idade e peso para identificar a compatibilidade entre doador e receptor. No caso da distribuição de fígados, a regra mudou em 2006. Deixou de ser cronológica para levar em conta a gravidade do estado de cada paciente, determinada por uma combinação de exames chamada Meld, também utilizada nos Estados Unidos. A única maneira de dar um mínimo de tranqüilidade a quem espera é trabalhar com absoluta transparência. Essa é uma das precariedades do sistema nacional de transplantes e, no Rio de Janeiro, chegou às raias do absurdo. Na semana passada, a Secretaria Estadual de Saúde admitiu que até hoje – Ribeiro foi afastado da coordenação de transplantes em março do ano passado – o ranking de espera por um fígado tem pacientes duplicados, doentes sem exame em dia, mortos e pessoas já transplantadas. Um relatório do Departamento Nacional de Auditoria do SUS constatou também a existência de uma lista paralela na gestão de Ribeiro. É um campo fértil para fraudes.

Ribeiro é acusado de manipular informações sobre o estado dos órgãos doados ou de pacientes. Em julho de 2003, dias depois de assumir a coordenação da central de transplantes, ele implantou um fígado no 32° paciente da lista, Jaime Ariston – irmão do então secretário estadual de Transportes, Augusto Ariston. Para isso, classificou o órgão doado de "marginal", ou seja: no limite de apresentar risco ao receptor. Assim, desobrigou-se de oferecê-lo aos primeiros da fila, numa prática condenada pelo Ministério da Saúde. "A classificação e o procedimento não existem. Esses órgãos precisariam ser oferecidos à lista", diz o diretor do Departamento de Atenção Especializada do ministério, Alberto Beltrame.

No Rio, a Secretaria de Saúde determinou o recadastramento de todos os pacientes inscritos na lista de espera por um transplante de fígado. É o primeiro passo para regularizar a situação. Mas um caso como esse significa um prejuízo de dimensões incalculáveis num país que ainda está longe do ideal em relação à taxa de doação de órgãos (ver quadro abaixo). Para conquistar a confiança da população, a única saída é reforçar os controles. A esse respeito, diz Sergio Mies, do Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo, um dos profissionais mais respeitados do país: "O sistema de transplantes precisa ser auditado, tem de ter lisura. Quando se favorece alguém, sabe-se que outro vai morrer".

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