Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, agosto 12, 2008

Espírito olímpico ALI KAMEL

A abertura dos Jogos Olímpicos foi realmente bonita, mas eu pergunto: ninguém aí ficou com medo não? Os tambores ressoando daquela maneira, numa gesticulação que, para mim, parecia um grito de guerra, aquela multidão em êxtase nacionalista, tudo coroado com aqueles soldados absolutamente fardados, de quepes altíssimos, luvas brancas, eretos, reverenciando a bandeira ao som do hino nacional, nada disso assustou? Em outros jogos, claro, a bandeira é hasteada por um ou dois militares, mas, pelo que revi, nunca por tantos e com aquela coreografia marcial. Fiquei com os dois pés atrás. Quem tem na memória os filmes sobre os Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936, com aquela grandiosidade nazista, sabe do que eu estou falando. Chico Caruso, que consegue resumir tudo, publicou, domingo, Bush e Putin conversando na cerimônia e a frase: “Com tiro na nuca, até eu.” Esse negócio de espírito olímpico não me convence. Acho um absurdo que se tenha deixado de lado a política em prol do “congraçamento” das nações promovido pelos esportes.

Que nações? Como esquecer o fato de que a China hoje é a mais rica e poderosa ditadura do mundo, que não tem o menor constrangimento de fazer as piores coisas no cenário internacional, há anos? Só para citar três exemplos, não tira as mãos do Tibete, apóia o regime genocida do Sudão (com armas e dinheiro) e, na ONU, vetou, ao lado da Rússia, as sanções que o mundo queria impor ao Zimbábue, onde a ditadura atroz de Robert Mugabe roubou de forma descarada as eleições que davam a vitória a seu opositor. No plano interno, reina a repressão e a censura, não há o menor vestígio de liberdade.

A Anistia Internacional denuncia que, hoje, 500 mil pessoas estão presas na China, sem acusação formal ou julgamento.

Em janeiro do ano passado, a lei foi alterada para que a última palavra sobre pena de morte seja da Suprema Corte, mas, mesmo assim, a China continua sendo o país com o maior número de execuções. Não há números oficiais, o que dificulta tudo, mas a Anistia, baseando-se no que é revelado pela imprensa, estima que, em 2007, 470 pessoas tenham sido executadas e 1.860 aguardavam execução. No ano anterior, tinham sido 1.010 mortos e 2.790 no corredor da morte. A Anistia cita, porém, estudos feitos pelo professor de Direito Penal, Liv Renwen, segundo os quais a China executa 8 mil pessoas anualmente. E, o que é pior: 68 crimes são passíveis de punição com a morte, entre eles os chamados crimes não-violentos, como fraude fiscal e corrupção. Com a agravante de que os julgamentos são sumários, sem dar ao réu amplo direito de defesa.

Não é só. Ainda está em pleno vigor na China o bizarro processo de “reeducação pelo trabalho”: a polícia, sem acusação formal, julgamento ou monitoramento da Justiça, pode prender, por até três anos prorrogáveis por mais um, qualquer pessoa suspeita de ter cometido crimes considerados leves.

Elas são confinadas em instituições cujo objetivo é “reeducá-las”, obrigando-as a trabalhos forçados.

Não preciso também lembrar que a China não sabe o que é liberdade de imprensa, ali só circulam as informações que os censores deixam passar: até mesmo a internet, com 162 milhões de usuários, é ferreamente controlada, fazendo a China famosa por ter construído o mais poderoso e sofisticado “firewall do mundo”.

E o poderio militar chinês? Segundo o “New York Times” de sábado, o próprio Pentágono estima que as Forças Armadas da China tenham hoje mais recursos (dinheiro) à mão do que qualquer outro país, com a única exceção dos próprios Estados Unidos. A leitura de “O poderio militar da República Popular da China”, um relatório anual que o Pentágono produz para o Congresso americano, é de impressionar.

De 1996 a 2006, segundo dados oficiais, a China aumentou o seu orçamento militar a taxas de 11,8% ao ano, já descontada a inflação, muito acima, portanto, do crescimento anual do PIB no mesmo período (9,2%). Oficialmente, o orçamento militar chinês de 2007, da ordem de US$ 45 bi, teve um aumento de 17,8% em relação a 2006. O que preocupa é que essas cifras oficiais não incluem compras no exterior, investimentos em pesquisa e desenvolvimento (leia-se tecnologia) e equipamentos para as forças paramilitares. Os serviços secretos americanos estimam que, em 2007, os gastos militares reais dos chineses tenham sido da ordem de US$ 85 bi a US$ 125 bi, uma fortuna. Para comparar, o orçamento para 2008 das Forças Armadas do Brasil, essa potência emergente de que todos nos orgulhamos, é de apenas US$ 6 bi. Graças ao embargo europeu à venda de armas para a China, os maiores fornecedores do país são Rússia, Israel e Ucrânia, mas mesmo estes países não vendem o que têm de mais sofisticado. Segundo o Pentágono, isso não tranqüiliza, porque, nos últimos anos, graças à abundância de recursos, a China investiu pesadamente em tecnologia própria.

E está colhendo os frutos. Outro estudo, “O Poder Militar Chinês”, feito por uma força-tarefa composta por dezenas de especialistas capitaneados por Harold Brown, secretário de Defesa de Carter, é mais otimista: diz que a China ainda está vinte anos atrás dos EUA em termos de poder ofensivo, e que os EUA podem manter essa distância com uma condição: que continuem investindo em armas. Corrida armamentista à vista? O.k., vou ficar com os olhos grudados na TV, vou torcer por nossos atletas, as Olimpíadas são um show e merecem ser prestigiadas. Mas eu me pergunto se o COI não foi leniente demais dando a Pequim a honra de sediar os jogos. A democracia é um valor absoluto e universal, não devia haver espírito olímpico capaz de negligenciála. Na cerimônia de abertura, a China contou a sua história milenar, omitindo a tragédia comunista. Mas, na cena da bandeira, deixou-se trair: aqueles soldados empertigados deram muito bem o recado.

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