Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 24, 2008

Daniel Piza

A jangada voltou só


Dorival Caymmi fez poucas canções para seus 94 anos de vida, encerrada na semana passada, e no entanto é difícil imaginar música ainda tão longe de ser compreendida em sua grandeza. Acho que isso acontece porque ela ainda é vítima de duas apreensões: a dos que não percebem a sofisticação de sua arte, desprezando-a como exaltação da baianidade e brasilidade ou como produto da intuição preguiçosa; e a dos que querem convertê-lo justamente em estereótipo, num porta-voz da felicidade dengosa e mestiça que encarnaria o mito brasileiro, o projeto tropical. Mas, como água, sua música escorre pela brecha entre o rural e o urbano, o sociológico e o colonizado, o autóctone e o globalizado.

Prova disso é ser inclassificável e incomparável. Como classificá-la? Vi na Wikipédia que consta dos gêneros "samba, bossa nova". Não! Ou não só! E com quem compará-la? Só me ocorrem paralelos fora da arte musical, como na pintura de Pancetti e na literatura de Jorge Amado. Mesmo assim, são falhas. Caymmi tem o mesmo olhar de Pancetti, naquelas marinhas cuja beleza está em se aproximar da abstração e criar uma sensação de prazer sereno, mas não tem os personagens de Caymmi. Jorge Amado tem os personagens, a narrativa, mas Caymmi jamais é discursivo, jamais pinta sua galeria com o pano de fundo ideológico. Há rigor em sua malemolência; há vitalidade em sua concisão.

Achei divertido ler que suas canções são a expressão do desejo brasileiro de criar uma civilização alegre, etc. e tal. Alegre? Pode ser que Maracangalha seja alegre, ou Gabriela, ou tantas mais. Mas o que dizer da maioria de suas canções praieiras, certamente a parte mais sólida de sua obra, assim considerada até mesmo por Jorge Amado? A Jangada Voltou Só, O Bem do Mar e É Doce Morrer no Mar (com letra de Amado), minhas três preferidas, estão mais para tristes. Na primeira, Chico, o "boi do rancho" no Natal, e Bento, o cantador, morreram no mar, e as moças de Jaguaripe "choraram de fazer dó"; a festa acabou. Em O Bem do Mar há uma gravura extraordinária do homem dividido entre amor e aventura, o que lhe dá alcance universal. E na terceira, que investe no jogo doce-salgado, a tristeza é declarada ("Triste noite foi pra mim"), ao mesmo tempo que se aceita nobremente que um marinheiro morra afogado.

Esses saveiros e jangadas que não voltam misturam, assim, uma melancolia que parece remeter aos portugueses, como nas modinhas (com tintas de cultura árabe), e uma defesa da festa (como nos ritmos africanos). Caymmi, portanto, está longe de ser precursor do axé. E essa ambigüidade de suas canções praieiras se realizam com uma qualidade musical infinitamente superior. Suas melodias são lindas, de uma leveza sinuosa, e não por acaso o assobio introdutório de O Bem do Mar parece antecipar a bossa nova. Suas harmonias são de grande requinte, com modulações admiráveis, acentos que criam o dramático na medida certa ("é o mar, é o mar, é o mar/ que carrEga com A gente/ prA gente pescar"). E suas letras são pictóricas, fanopaicas: "Fez sua cama de noivo/ No colo de Iemanjá." Há um suave toque do mítico em Caymmi, como a lagoa escura arrodeada de areia branca no Abaeté.

Uma série de outras canções não se encaixa nem nessa modinha dramática nem no samba-exaltação de Maracangalha ou O Que É Que a Baiana Tem?. Penso em João Gilberto cantando Doralice ou Saudade da Bahia, captando o humor brejeiro numa dicção sincopada, sestrosa, suingada - como, de resto, fez Carmen Miranda em O Que É Que a Baiana Tem?, com grande talento vocal debaixo dos abacaxis e balangandãs. Não se pode confundir Caymmi com Ary Barroso; Caymmi é mais moderno. E há outra característica que se esqueceu: o cantor que ele era! Como Bento, "tinha bom peito e pra cantar não tinha vez". Mas seu vozeirão não deixava escapar as passagens tonais e sabia cantar ligeiro.

Seu sincretismo não era o dos estereótipos, dos estigmas que tanto agradam a antropólogos franceses em busca de seus antípodas. Era o da fusão de gêneros musicais, até mesmo o jazz que dizia ter escutado tanto na juventude, e sua superação numa forma peculiar, inimitável. As melhores misturas são as finas, já disse Ivan Lessa. São obras individuais, não planos coletivos. "Pobre de quem acredita/ Na glória e no dinheiro para ser feliz." Sofisticado, triste, intuitivo, alegre, Caymmi ensinou como ser o que se é. Pena que nem seus fãs aprenderam.

DE LA MUSIQUE

Por falar em bossa nova, recebi email de um produtor do período, Décio Carraro, se queixando de algumas imagens estabelecidas sobre aquela geração. Diz, por exemplo, que Gershwin foi influência sobre Tom Jobim, não sobre a bossa nova. E que Tom não fez parte da bossa nova, que era formada pela turma dos garotos descompromissados, amadores, como Carlinhos Lyra e Roberto Menescal, aos quais depois se juntaram os profissionais como ele, João Donato ou Ronaldo Bôscoli. Mas se pode falar sobre uma fase bossa-novista de Tom; como não? Décio diz também que todos faziam a batida à la João Gilberto antes do disco Chega de Saudade de 1958, que tinham aprendido com Menescal; João só a teria tornado mais sofisticada. O que não dá para negar é que João a tornou célebre. Décio também diz que só algumas letras eram ingênuas e cita Chega de Saudade - cuja música, ora, é de Tom Jobim - como se não fosse. Bem, "Há menos peixinhos a nadar no mar/ Do que os beijinhos que eu darei em sua boca", convenhamos... Por fim, nega que o estilo preferido de JK não fosse a bossa nova, tanto que convidou Tom e Vinicius para fazer a sinfonia da nova capital. Não sei se isso é mostra de gosto pessoal.

Picasso também odiou a palavra "cubismo" que um crítico inventou; e sua obra não se resume ao que ficou conhecido por esse nome. Mas, que não se pode falar de Picasso sem falar em cubismo, é inegável. O rótulo bossa nova é chato para a maioria dos músicos, que se vêem assim reduzidos, mas o conceito é consistente, como se pode ver ao percorrer a ótima exposição em cartaz na Oca. Embora ela não tenha sido um movimento no sentido de algo programaticamente lançado à sociedade, como fiz questão de ressaltar, o cancioneiro do período tem características comuns mais que evidentes. Acho apenas que isso deve ser usado como ponto de partida, não de chegada. Para respeitar sua grandeza.

ENSAIO DA CHINA

Faltam apenas alguns dias de China para mim, e a sensação é a de que mal raspei a superfície de sua complexidade. De qualquer modo, me ver mais livre de mitos e preconceitos que herdamos de visitantes e analistas apressados já é satisfatório. É o que me permite notar com estranheza que muitas pessoas discutem a questão do modelo chinês como se fosse algo apenas a adotar ou refutar, como se ele só pudesse ser avaliado à medida que for útil ou inútil para quem o interpreta.

Pelo que vi aqui, tenho a sensação de que o modelo - em transformação, portanto ainda difícil de dizer se bem-sucedido ou não - pode ser elogiado ou criticado em partes ou no todo, mas o fato é que dificilmente seria adaptável para outras realidades. A sociedade chinesa tem características por demais peculiares para que se acredite que sua aversão à democracia ocidental - pluralista, perspectivista, aberta - possa servir como inspiração para quem quer que seja. Por sinal, os chineses são os primeiros a dizer que aqui isso não funcionaria, dado o número de habitantes, o tamanho do território e o substrato milenar.

Volto ao assunto na próxima semana. O modelo chinês, por ora, parece estar dando resultado - ao menos houve grande redução de pobreza nos últimos 30 anos - exclusivamente para a China. E isso nem sequer é garantia de que eles mesmos não teriam outra opção. Há tanto que não sabemos, e isso só se pode saber sabendo...

RODAPÉ

Terminei de ler Mao?s Last Revolution, de Roderick MacFarquhar e Michael Schoenhals, que citei semana passada. Não sei se já traduziram ou compraram direitos no Brasil; se não, eis uma ótima dica. O que a Guarda Vermelha, com o livrinho de Mao à mão, fez à população chinesa, em nome da Revolução "Cultural", não tem outro nome senão terror de Estado. Doutrinou e matou em escalas incomparáveis. Contou com o ancestral senso de hierarquia chinês, mas até mesmo os chineses dizem que ele foi longe demais, para usar um eufemismo. Se você quer entender como as ideologias utópicas fizeram mal à humanidade, leia esse livro.

POR QUE NÃO ME UFANO

Acompanhei com tristeza pela internet as notícias sobre o incêndio no Teatro Cultura Artística, às vésperas de aniversário, com Steinway novo e uma excelente programação para os próximos meses. A sociedade que a mantém é um abrigo de qualidade no difícil mundo cultural brasileiro. Espero que tudo se resolva da melhor maneira possível.

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