Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 24, 2008

João Ubaldo Ribeiro Memória de Caymmi

Infelizmente, a linguagem é linear e as coisas têm que ser contadas em sucessão. Que fazer, a gente vive no tempo - há sempre um "antes", um "durante" e um "depois". Mas eu gostaria que fosse possível fotografar uma amizade de mais de quatro décadas, como a de Dorival Caymmi comigo. Não filmar, cujo resultado, por mais que inventem truques engenhosos, tampouco escapa da linearidade, mas fotografar mesmo. É como se tudo pudesse ter sido simultâneo, do jeito em que agora está na minha cabeça. Não me ocorre uma sucessão ou conjunto de fatos, me vem somente uma espécie de claridade alegre, risonha, festeira. E não há como transmitir isso a ninguém.

Mas, se não posso livrar-me da cronologia, posso pelo menos embaralhá-la à vontade. E agora estamos ele e eu sentados na casa dele na Bahia, há não sei quantos anos. Ele em sua poltrona favorita, perto da porta de entrada. Sem camisa, de bermuda e chinela, peito tomado por colares de contas e guias de todos os tipos, cabeça repousada sobre o telefone em que falava, recusando à sua maneira um convite para festa ou almoço, não lembro bem. Quem nunca viu Caymmi recusar alguma coisa perdeu um espetáculo único. Aliás, quem nunca conviveu com Caymmi um pouco assim meio que perdeu muito, como às vezes se diz lá na ilha.

Ele nunca recusava convites explicitamente, pelo menos que eu tenha testemunhado - e testemunhei diversos. Conversava com o convidador sobre assuntos variados, filosofava um pouco, concordava enfaticamente com algumas afirmações do outro, contava histórias, fazia observações, comentava o tempo, elogiava profusamente quem quer que fosse mencionado na conversa e ria com freqüência. Enfim, montavam-se verdadeiras prosas, em que o sujeito acabava se despedindo e desligando, provavelmente sem entender nada e não tendo nem certeza sobre se o convite fora mesmo recusado. Uma vez comentei isso com ele e ele respondeu muito sério, embora com aquela expressão marota que não o deixava nem quando ele se aborrecia: "É uma técnica que eu desenvolvi e só não patenteei porque só quem sabe usar sou eu".

Acabado o telefonema, passou-se à verdadeira prosa, a que se dava entre nós. Pode ser que meus amigos pessoais não acreditem, mas eu ouvia muito mais do que falava. Logo aprendi que havia algo que denominei, por falta de inventividade, de "a história de Caymmi". A história não era a da vida dele, embora sua biografia aparecesse muito, mas era simplesmente a história. Um dos melhores conversadores que conheci, expressivo, eloqüente, histriônico, ele pegava a palavra e ninguém queria mais que ela lhe fosse tomada. A história começava por algum acontecimento mencionado e ia seguindo, desenrolando-se como uma serpentina ou uma espiral, e não acabava nunca. E ninguém que a ouvia queria que acabasse. E ainda não acabou mesmo, só que não mais está conosco seu grande contador.

Corte para outro encontro na casa dele, onde eu não tinha aparecido nem dado notícias havia semanas. Que tinha acontecido? Respondi que andava me virando. Mercado sempre difícil para jornalistas, escritores e afins, dureza mesmo. Mas que ele não se preocupasse, eu me virava. E ele, apesar de algumas palavras encorajadoras, pareceu não se preocupar mesmo.

Dias mais tarde, me procura, num dos bicos em que eu batalhava contra a penúria, o representante de uma agência de propaganda. Um banco, cliente dessa agência, ia inaugurar sua primeira filial em Belo Horizonte e haviam escolhido Caymmi para estrelar um comercial dirigido aos mineiros. Ele só tinha que aparecer vestido de Dorival Caymmi mesmo e dizer uma frase de duas linhas. Tudo acertado, foram a ele e mostraram a frase. Não precisava nem decorá-la, podia ler de um cartaz posto à sua frente, fora de cena. Ele a examinou com gravidade, fez a beiçola de dúvida que era também marca sua e perguntou quem tinha escrito aquele negócio.

- Um redator lá da agência, é só isso mesmo que o cliente quer que o senhor diga, é só dizer essas palavrinhas.

- Não digo. Só digo textos de alta qualidade literária.

- Mas qualidade literária aqui, o senhor...

- Não adianta. Procurem João Ubaldo Ribeiro. Só leio se ele escrever. E vocês paguem a ele decentemente, para eu não passar vergonha.

Pronto. Ali estava o compreensivelmente indignado representante da agência para que eu escrevesse a frase que Caymmi leria. O cheque era régio, dava de sobra para me safar do que na época se chamava pindaíba total. Mas escrever o quê? Pois é, disse o emissário, não tem nada o que escrever, é só "eu sou Dorival Caymmi e estou aqui em Belo Horizonte etc.", só isso. Vi que era verdade e, morto de vergonha, pedi pelo menos para copiar as palavras na minha máquina, para Caymmi realmente receber um papel saído de minhas mãos. Voltaram lá, ele nem olhou o texto, só perguntou se era meu mesmo.

- Então eu leio - disse ele. - Se é do João Ubaldo, eu leio.

E leu. Dias mais tarde, apareci de novo na casa dele, trocamos umas abobrinhas e ele, antes de recomeçar a história como sempre, me perguntou se as coisas tinham melhorado, eu disse que sim, ele bloqueou meu agradecimento, voltou logo à história e nunca me falou no assunto.

É desse Caymmi que estou lembrando agora, com o coração apertado. Que ele foi uma dos maiores artistas da nossa História, que falas suas se incorporaram à linguagem popular mais do que as de qualquer outro, que ele foi um grande, incomparável e insubstituível criador de beleza, isso e muito mais eu não preciso repetir, porque todos sabemos, Deus seja louvado.

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