Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 05, 2005

VEJA on-line Na república salarial do Brasil


A epopéia de uma semana em que
altas autoridades fizeram de tudo
(de tudo mesmo) para aumentar
seus próprios ganhos


Otávio Cabral


Givaldo Barbosa/Ag. O Globo
Jobim (à esq.), depois de prestar consultoria jurídica a Severino (à dir.) sobre a questão salarial da Câmara: interesse em aumentar salários do próprio STF



Só faltou o presidente Lula também sentar-se à mesa e pedir aumento salarial para si mesmo. Na quarta-feira da semana passada, os chefes de dois poderes da República, o Legislativo e o Judiciário, empenharam-se duramente para conseguir um aumento de salário. O presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, do PP de Pernambuco, fez tudo o que podia para elevar de 12.850 para 21.500 reais a remuneração mensal dos deputados. Primeiro, tentou apressar a tramitação do projeto salarial colhendo as assinaturas de 257 deputados, mas, como os parlamentares já haviam começado a ouvir os protestos vindos de todos os pontos do país, a estratégia não deu certo. Só 180 deputados assinaram o pedido de urgência. Severino tentou então um golpe inovador: aprovar o aumento sem voto do plenário. Seria uma decisão administrativa conjunta das mesas diretoras da Câmara e do Senado. Quem deu a idéia foi o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, que exerceu dois mandatos de deputado em Brasília e conhece o funcionamento da Casa. Ao apontar uma saída jurídica para viabilizar o aumento dos deputados, o ministro Jobim quis agradar Severino – e tinha um poderoso estímulo para agir desse modo.

Roberto Stuckert Filho/Ag. O Globo
Renan Calheiros, presidente do Senado: ele soube ouvir a opinião pública e barrou o aumento salarial


Os próprios ministros do Supremo querem aumentar em 12,5% seus salários, passando-os dos atuais 19.115 reais para 21.500 reais, valor que se transformaria automaticamente no novo teto salarial do funcionalismo público. O projeto que prevê o aumento de 12,5% está pronto para ser votado e depende apenas da boa vontade de Severino para incluí-lo na pauta. Até agora, ele não fez isso. Na semana passada, quando percebeu que o aumento dos deputados poderia naufragar, Severino fez saber que o aumento dos ministros do Supremo poderia ter o mesmo fim – razão pela qual Jobim foi tão solícito em bolar uma saída jurídica. Deu tudo errado. A decisão administrativa para subir os salários dos parlamentares requeria a concordância do Senado, mas seu presidente, o senador alagoano Renan Calheiros, percebeu a oportunidade de sair-se como salvador da pátria e recusou-se a participar do golpe salarial. O movimento sindical dos deputados causou uma reação silenciosa mas forte na população. A Câmara recebeu 8.000 e-mails contra a idéia, além de 2.500 telefonemas de eleitores. Houve deputados cuja caixa postal travou de tantos protestos. O deputado Roberto Freire, do PPS de Pernambuco, conta que recebeu, apenas ele, 2.000 e-mails de eleitores.

A manobra salarial teve início na noite de terça-feira, quando Severino convocou os líderes de partidos para um jantar em sua casa. O jantar estava ruim. Havia pouca bebida. Apenas uma garrafa de uísque, que foi enxugada em menos de trinta minutos. Os salgadinhos estavam frios e excessivamente gordurosos. A conversa estava insossa: Severino queria convencer os presentes a concordar com o aumento salarial de 67% dos deputados. Um após o outro, os líderes disseram que eram contra o aumento. O líder do PMDB, deputado José Borba, foi o único que nada falou. O líder do PL, Sandro Mabel, foi dúbio. Só José Janene, líder do PP de Severino, e Enéas Carneiro, líder do Prona, apoiaram o aumento. Severino irritou-se. "O que vocês estão fazendo é demagogia! Todos querem o aumento! Vocês vão ficar dois anos sem nada da presidência. Não contem comigo para mais nada se não aprovarem esse aumento!" Sua violência verbal desagradou a um dos aliados. Enéas Carneiro, do Prona, decidiu cair fora. "Foi vossa excelência que prometeu o aumento, não fomos nós. Resolva o problema que criou", disse ele.


Eduardo Knapp/Folha Imagem
Um protesto contra o aumento salarial dos deputados, em São Paulo: 8 000 e-mails e 2 500 telefonemas

Deu-se o impasse. "Se não é ético e legal o aumento para os deputados, vai ser para os ministros do Supremo?", provocou o líder José Janene, do PP. "É preciso ver se é oportuno ainda votar o aumento do Supremo então." Com o clima azedo, o jantar estava ficando vazio. Pouco mais de meia dúzia ficou para comer o risoto de camarão e o filé ao molho madeira. Mas, com as palavras de Janene ecoando na sala, Severino teve a idéia de telefonar para o ministro Nelson Jobim e contar o que acontecera – sem deixar de informar que a crise podia espirrar para o salário do STF. No dia seguinte, depois do almoço, Severino, ao lado de vários colegas, recebeu Jobim em sua residência oficial – e ali ouviu a sugestão do magistrado de viabilizar o aumento por ato da mesa. Jobim explicou que um decreto legislativo de 2002 previa a possibilidade de a mesa da Câmara e a do Senado aumentarem seus salários equiparando-os aos dos ministros do Supremo. Ou seja: de acordo com Jobim, subitamente convertido em consultor jurídico da Câmara, não era possível brindar os deputados com 21 500 reais, mas dava para pular de 12 850 para 19 115 reais.

Depois que o senador Renan Calheiros barrou a manobra, Severino voltou a irritar-se com seus pares e anunciou que estava encerrada a luta pelo aumento salarial. "Não vou mais mexer com isso. Cumpri minha palavra. Não querem, não querem. Mas vou dizer uma coisa: eles são uns idiotas mesmo", desabafou o presidente. Era, porém, outra manobra. O deputado Ciro Nogueira, do PP do Piauí, que ocupa a 2ª vice-presidência da Câmara, tentou demover Renan Calheiros. O melhor amigo de Severino, o deputado Benedito Dias, do PP do Amapá, saiu em busca de uma alternativa jurídica para dar aumento apenas aos deputados, excluindo os senadores. Como nada disso vingara até a noite de sexta-feira passada, a idéia passou a ser a concessão de aumentos indiretos. O salário poderia ficar o mesmo, mas a verba de gabinete, hoje fixada em 35.000 reais, não seria aumentada para 45.000 como se previa no início, mas para 50.000 reais. O dinheiro destinado a manter os escritórios dos deputados nos seus redutos eleitorais, hoje estabelecido em 12.000 reais, deveria subir, no plano original, para 15.000, mas agora já se pensa em elevá-lo para 20.000 reais. Isso tudo, é claro, além de manter a idéia de dar um carro oficial para cada deputado. Enfim, o que não falta a Severino e sua turma são idéias para dar uma arrochada nos cofres públicos – em benefício próprio.

Muito prazer, Maurício Rabelo!

O deputado é acusado de desvio de verba oficial
e de surrupiar salário
de funcionários. Bem de vida,
nem de longe
lembra o sujeito simples de dois anos atrás


Policarpo Junior


ariz
Cristiano Mariz
Rabelo, nos tempos de radialista remediado e agora: renda familiar de quase 35 000 reais

O radialista Maurício Rabelo comprou seu primeiro terno quando foi tomar posse como deputado federal, em fevereiro de 2003. Usara um, meses antes, emprestado por um amigo, no dia em que foi comunicar ao então governador do Tocantins, Siqueira Campos, sua intenção de se candidatar. De origem humilde, Rabelo jamais imaginara que um dia trocaria o rádio pelo Parlamento. Mas tinha gosto pela política. Seu programa, que mesclava músicas sertanejas e bate-papo com ouvintes, era um sucesso na Região Norte do país. Empresários do Tocantins, interessados em descobrir um candidato bom de voto, fizeram uma pesquisa na qual o eleitor dizia espontaneamente o nome de quem lhe viesse à cabeça. Maurício Rabelo despontou entre os mais citados. Entusiasmados, os empresários o convidaram para candidatar-se. Ele aceitou o desafio, com uma ressalva: não tinha dinheiro para a campanha. O salário de radialista mal dava para bancar as despesas da família, que morava na cidade de Valparaíso de Goiás, a 60 quilômetros de seu trabalho, em Brasília. Ia trabalhar num carro com dez anos de uso. Os empresários garantiram que ele não teria gastos. E assim foi.

Eleito com 35 000 votos, Maurício Rabelo tornou-se exemplo de uma velha mazela: como usar a política em benefício pessoal pegando a dinheirama paga a um deputado – dinheirama mesmo sem o aumento tão desejado por Severino Cavalcanti. Rabelo estreou na Câmara dos Deputados como tantos outros: trocando de partido. Eleito pelo PSD, pulou para o PL. E logo percebeu o poder multiplicador dos 12 000 reais que a Câmara dá a cada um dos 513 deputados para bancar as despesas do escritório político nos estados. Nos primeiros dias, Rabelo alugou dois carros, uma caminhonete Mitsubishi e um automóvel Gol por 6 300 reais mensais. Os veículos pertenciam a dois funcionários de seu gabinete, Marcos Antonio Moreira e Jackson Bonfim Horta. Não haveria nada de errado se o contrato de locação dos carros fosse verdadeiro. Não era. O contrato de aluguel servia apenas para que o deputado pudesse embolsar 6 300 reais da verba para o escritório no estado. Nessa mesma época, Rabelo comprou um Honda Civic e um Golf zero-quilômetro. Os 12 000 reais da verba indenizatória da Câmara eram depositados numa conta na Caixa Econômica – e, da mesma conta, ele tirava dinheiro para pagar a escola dos filhos, a assinatura da TV a cabo, os impostos de sua empresa de publicidade, e, assim, a vida foi melhorando.

"Os contratos de aluguel de carro serviam para justificar as despesas pessoais", diz Jackson Bonfim Horta, que presenciou toda a armação. Marcos Antonio Moreira, o outro funcionário cujo carro foi "alugado", controlava a contabilidade do gabinete e guardava os documentos das operações. Com a vida melhorando, Rabelo mudou-se para um apartamento funcional da Câmara. Ele resolveu investir em imóveis. Comprou dois terrenos em uma valorizada área de Brasília. No dia 15 de cada mês, um funcionário de seu gabinete sacava 3 390 reais da verba dos 12 000 reais para pagar a prestação dos terrenos. Não podia usar cheque, pois os lotes estavam em nome de laranjas. Um lote foi adquirido em nome de sua sogra. O outro estava em nome de uma amiga. Claro que, logo depois da compra, Rabelo teve o cuidado de ir a um cartório e fazer duas procurações, ambas lhe dando poderes para fazer o quiser com os lotes. Com a verba que deveria usar para sustentar um escritório político no Tocantins, ele comprou dois bons terrenos.

Se um deputado embolsa os 12 000 reais destinados ao sustento do escritório político, seu salário automaticamente pula de 12 850 para quase 25 000 reais. Bem, Rabelo ficou com mais do que isso. Fez um arranjo com um deputado distrital de Brasília, Roney Nemer, que contratou em seu gabinete a esposa e o filho de Rabelo – e Rabelo, por sua vez, contratou parentes de Nemer. Com essa manobra, o deputado incrementou sua renda familiar em 7 500 reais – que, somados àqueles 25 000 reais, já fez os ganhos da família romper a barreira dos 32 000 reais por mês. Tem mais. Cada deputado recebe 35 000 reais para contratar funcionários para seu gabinete em Brasília. Lembram-se dos dois assessores que simulavam o aluguel dos carros? Pois bem, eles contam que fizeram um acordo com o deputado antes de ser nomeados. Todo fim de mês, cada um deles repassava às mãos de Rabelo, em dinheiro vivo, metade de seu salário. "Eu passava 1 000 reais para o deputado todo mês", diz o ex-funcionário Marco Antonio Moreira. "E ainda tinha o constrangimento de fazer a contabilidade pessoal dele", completa. Com a transferência de parte do salário dos dois servidores, Rabelo vitaminou sua renda familiar em mais 1 800 reais – o que já alçou seus ganhos a mais de 34 000 reais. Nem é preciso dizer que, em apenas dois anos de mandato, o radialista remediado, que não tinha paletó e andava num carro velho, não existe mais. Maurício Rabelo, agora, é outro homem. Em entrevista a VEJA, ele negou todas as acusações e culpou seus ex-assessores por qualquer fraude que tenha havido. "Eles é que cuidaram da minha contabilidade", diz ele.

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