Entrevista:O Estado inteligente

sábado, março 05, 2005

VEJA Entrevista: Severino Cavalcanti


"Até os 100 anos"

O presidente da Câmara avisa que
não pretende se aposentar tão cedo
e dá sua visão da sociedade e do país


Felipe Patury

Cristiano Mariz

"Cheguei a presidente porque a população queria. A prova é que me aplaudem aonde vou"

Há um mês, o pernambucano Severino Cavalcanti, de 74 anos, era só um personagem folclórico da Câmara dos Deputados. Os deputados que comandam o destino das votações o chamavam de "rei do baixo clero". Isso porque a voz de Severino só era ouvida quando se tratava de obter vantagens financeiras para os parlamentares que compõem a maioria silenciosa daquela casa legislativa. De "rei do baixo clero", Severino tornou-se presidente da Câmara. Ou seja, é o terceiro homem da República. Em caso de ausência do presidente Lula e do vice-presidente José Alencar, será ele a ocupar o Planalto. Na função de que está investido, é responsável por escolher quais projetos serão votados pela Câmara. Severino virou, enfim, "cardeal". Sua estréia no comando da Mesa, na semana passada, foi marcada por um revés: ele viu naufragar seu projeto de aumentar os salários dos deputados de 12 850 para 21 500 reais. Mas pôde saborear uma vitória – a aprovação da Lei de Biossegurança, que viabiliza a pesquisa com células-tronco embrionárias. Católico fervoroso, Severino era contra a medida. Mas foi convencido a voltar atrás pela filha. Nesta entrevista a VEJA, ele fala sobre sua biografia e suas concepções. "Podem debochar de mim, mas defendo princípios éticos", diz o presidente da Câmara.

Veja – O senhor sempre quis ser político?
Severino – Queria ser padre. Desisti porque meu pai não tinha dinheiro para comprar o enxoval que a Igreja exigia. Foi quando saí de minha cidade natal, João Alfredo, no interior de Pernambuco, e fui estudar no Recife. Trabalhei para pagar o ginásio. Depois fui para São Paulo. Lá nasceu essa vontade dentro de mim.

Veja – Por que o senhor se tornou político?
Severino – Porque eu era anticomunista e, na época, o comunismo estava tomando conta do país. Miguel Arraes mandava em Pernambuco – fui candidato a prefeito de João Alfredo para derrotar seu candidato. Tinha 33 anos. Ganhei porque, desde os 18 anos, eu ia lá e distribuía o "natal" das crianças pobres.

Veja – O senhor ainda é anticomunista?
Severino – Não posso mais ser depois que o Muro de Berlim caiu. O comunismo acabou.

Veja – O senhor foi da Arena, partido que apoiou a ditadura militar. Como o senhor vê o regime de 64?
Severino – Prestou grandes serviços ao Brasil. Evitou que caíssemos nas mãos dos comunistas. Poderíamos ficar como a Rússia, uma federação que se esfacelou. Se o comunismo fosse bom, não teria acabado lá e nos outros países que eram seus satélites. A teoria do comunismo é acabar com o povo. Nunca distribuiu renda. Quem está distribuindo é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Só conseguimos isso porque ele mudou sua maneira de pensar. Viu que a esquerda estava errada e não seguiu os esquerdistas do PT. Aquele partido é uma confederação de tendências. Cada uma quer fazer uma coisa. Por isso, Lula tem dificuldades com eles. Tenho o mais profundo respeito pelo presidente porque só os homens de boa-fé pensam uma coisa e depois mudam.

Veja – O senhor também muda de opinião?
Severino – Mudo. Foi o caso da pesquisa com as células-tronco. Era um item polêmico da Lei de Biossegurança que votamos na semana passada. Eu era contra. Minha filha Ana me repreendeu. Ela é preparada, freqüentou universidade. Disse: "Papai, o senhor está sendo sectário". Conversei com cientistas de São Paulo, que foram indicados pelo meu médico, David Uip. Minha filha tinha razão. Fiz tudo para que o projeto fosse aprovado.

Veja – O senhor luta contra a união civil entre homossexuais. O que o senhor tem contra os gays?
Severino – Nada. Tenho amigos entre eles que até fazem campanha para mim. O que não quero é fazer propaganda dessa coisa. O que é ruim é fácil de proliferar. Se os homossexuais podem ir ao cartório doar seus bens uns para os outros, por que vamos oficializar uma coisa dessas? Podem debochar de mim, mas defendo princípios éticos. Quem de bom senso defende a união de homem com homem e mulher com mulher?

Veja – O senhor vai colocar o projeto em votação?
Severino – Vou, mas farei de tudo para que não seja aprovado. Esse projeto desencaminha a juventude. Se há deputados que se sentem bem defendendo os homossexuais e as lésbicas, o problema é deles.

Veja – O senhor fez um acordo com o presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, para aumentar os salários dos deputados sem precisar levar o assunto ao plenário... (veja reportagem na pág. 38)
Severino – Isso não é verdade. Jobim mandou para a Câmara uma mensagem reajustando o salário dos ministros do Supremo de 17 340 reais para 21 500. Isso é da alçada dele. Nós só temos de aprovar. É o que vamos fazer. Na próxima semana, coloco em votação.

Veja – Como ficou sua relação com o presidente do Senado, Renan Calheiros, depois que ele abortou o aumento de salário dos parlamentares, uma promessa sua de campanha à presidência da Câmara?
Severino – Cada um tem sua maneira de pensar e agir. No lugar dele, não teria dado uma entrevista contra o aumento no momento em que isso estava sendo negociado. Eu não ajo assim, mas, para ele, isso não tem importância. Não vou julgar seus pronunciamentos.

Veja – Muitos deputados dizem que o senhor vai administrar a Câmara como se fosse um sindicato.
Severino – Só respondo a isso porque você está refletindo opinião alheia. A Câmara, até hoje, não era independente nem respeitada. Quero que seja. Se a imprensa fosse mais sensível, a população já estaria ao meu lado. Vamos mudar as regras do Orçamento para tornar obrigatória a liberação de verbas das emendas dos parlamentares. Com isso, as emendas não serão moeda de troca com o governo.

Veja – Como são os partidos políticos brasileiros?
Severino – Uma verdadeira indecência. Os deputados fazem troca-troca de legendas, o que mostra que faltam ética e princípios a algumas pessoas que estão na Câmara. Sou favorável à fidelidade partidária.

Veja – O senhor vai promover uma investigação para descobrir se os deputados que participaram do último troca-troca receberam dinheiro para mudar de partido?
Severino – Não tenho indícios concretos que me levem a abrir um processo contra eles, mas não entendo por que um deputado dorme em um partido e acorda em outro. São sonhos noturnos? Vou pedir ao presidente do PMDB, Michel Temer, que dê um basta nisso. Afinal, o troca-troca mesmo foi no partido dele.

Veja – O que o senhor pretende fazer quando concluir seu mandato?
Severino – Vou concorrer a outro. Meu pai morreu com 98 anos. Minha mãe, com 97. Tenho 74. Já fui operado de tanta coisa que, se lhe disser, você pensará que morri. Já operei a próstata, botei marca-passo, mas vou até os 100 anos. Até lá, eu quero ser deputado. Essa é a razão da minha vida. Tanto que fiz em cartório uma declaração de que não serei candidato a senador nem a governador por Pernambuco. Não quero colocar meu mandato de presidente da Câmara em benefício de uma candidatura majoritária.

Veja – Seu antecessor, João Paulo Cunha, ambicionava deixar o cargo para ser candidato ao governo de São Paulo. Ele está errado?
Severino – É direito dele, mas eu estou realizando meu sonho. É o coroamento da minha vida.

Veja – É por isso que o chamam de "rei do baixo clero"?
Severino – Podia ser rei antes de ser eleito presidente da Câmara. Mas, agora, sou presidente de todos os deputados, não só dos que me apoiaram. Além do mais, quero acabar com essa história de baixo, médio, alto clero. Todos os deputados têm a mesma delegação popular. Tomei medidas para acabar com isso de baixo clero. Por exemplo, estamos mandando uma delegação para Nova York, e escolhi deputados que nunca viajaram em missão oficial.

Veja – Como o presidente Lula, o senhor vem de uma família pobre do interior de Pernambuco. O que mais os senhores têm em comum?
Severino – Completei 52 anos de casado com minha mulher, Amélia. Nunca vivi com outra. Lula é viúvo, mas casou em segundas núpcias e vive muito bem com dona Marisa. Eles têm o mesmo entusiasmo pelo casamento que nós.

Veja – Do ponto de vista político, há semelhanças?
Severino – Não. Tive muito mais mandatos do que ele. Tenho quarenta anos de mandatos. Cheguei a presidente da Câmara porque os deputados e a população queriam. A prova é que fui aplaudido em Roraima e no Rio Grande do Sul. Em um restaurante em Manaus, as madames queriam tirar retrato comigo. Em Goiás, tirei uns 200 retratos com líderes rurais. Só não tirei mais porque o tempo era curto.

Veja – Na última quarta-feira, o senhor foi vaiado por sindicalistas no mesmo dia em que seu projeto de aumento de salários de deputados foi derrotado.
Severino – Os sindicalistas reclamaram do meu atraso. Pedi desculpas e saí aplaudido.

Veja – Na sua posse, o senhor prometeu paz ao governo, mas colocou na pauta de votação vários projetos que incomodam o Palácio do Planalto.
Severino – A Câmara é independente. Quem faz a pauta não é o governo, é o presidente da Câmara. Não sei como funcionava antes, mas é de se perguntar por que os projetos não andavam. Vou levar ao plenário os projetos que estão prontos para votação. Se o governo tem maioria, que faça valer sua posição.

Veja – O senhor prometeu paz, mas disse que o presidente do PT, José Genoíno, pediu sua cabeça.
Severino – Isso acabou. Ele falou mal de mim em um programa de televisão para ficar bem com o povo. Estava reproduzindo o que fez a vida toda: atacar os outros. Perdôo porque errar humanum est. Agora, ele tem de se entrosar com a nossa administração.

Veja – Como o senhor avalia o desempenho do ministro Antonio Palocci na Fazenda?
Severino – Presta grandes serviços ao país. A economia está estabilizada. Evidentemente, não acerta todas. A medida provisória 232 (que aumenta impostos do setor de serviços), por exemplo, foi uma falha.

Veja – Descobriu-se que o senhor passou alguns cheques sem fundos.
Severino – Olhe, já tive uma posição boa. Tive lojas em São Paulo, em Pernambuco e em Brasília. Fui vendendo tudo para gastar em política. Um assessor meu diz que, por falta do que dizer, estão me acusando de "empobrecimento ilícito".

Veja – Quem são os políticos que o senhor mais admira?
Severino – Admirava Carlos Lacerda (líder da UDN). Nos anos 50, participei das Caravanas da Liberdade que ele promoveu quando o governo Juscelino Kubitschek seguiu um caminho tortuoso. Hoje respeito muito o Juscelino também. Discordei dele na época, mas lhe devemos a industrialização do país. Agora, que ele está no céu, peço desculpas por ter feito oposição a seu governo.

Veja – Que político o senhor gostaria de ter sido?
Severino – Abraham Lincoln. Ele tem uma certa semelhança comigo. Veio de baixo, apesar de, nos Estados Unidos, os pobres serem sempre mais ricos que no Brasil. Defendeu os oprimidos. Eu me espelho nele.

Veja – Há historiadores que defendem a tese de que Lincoln era homossexual.
Severino – É? Os livros que li não diziam isso. Mas o que me interessa nele é a sua trajetória política.

Veja – O que o senhor faz nas horas vagas?
Severino – Não tenho mais horas vagas. Gostava de jogar xadrez, mas não tenho mais tempo. Faz uns trinta anos que não jogo uma partida.

Veja – O senhor não gosta de ler, assistir a filmes?
Severino – Às vezes, leio um pouquinho os jornais para saber se estão falando mal de mim. Quando falam bem, fico cheio de vida. Quando falam mal, tenho piedade, porque estão cometendo uma injustiça.

Veja – E cinema, o senhor vai de vez em quando?
Severino – Não sou muito chegado. Ia quando namorava, porque Amélia gosta. Depois que casei, parei. Não me lembro qual foi o último filme que vi no cinema. Já faz uns quarenta anos.

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