Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, março 18, 2005

Jornal O Globo -Luiz Garcia:De Chiquinho a William

Seria ingenuidade supor que o antropólogo Rubem César Fernandes, diretor do Viva Rio, e o secretário de Segurança, Marcelo Itagiba, são almas gêmeas no que se refere às favelas da cidade e o que fazer para salvá-las.


Mas artigos de ambos, publicados ontem nesta página, mostram alguns pontos promissores.

Os dois, por exemplo, fazem questão de afirmar que os favelados são as grandes vítimas dos traficantes encastelados nas comunidades carentes. Evidente, mas é pelo óbvio que homens de boa vontade começam a concordar.

Eles discordam em ponto importante. Rubem César afirma explicitamente que os líderes locais — presidentes de associações de moradores e outros — são personagens críticos na integração das coletividades marginais à sociedade organizada. Já Itagiba convoca os moradores a uma “insurreição pacífica e cidadã” contra os bandidos, em aliança com as autoridades. E não recruta para a sua rebelião os líderes defendidos por Rubem.

Em outro ponto de desacordo, o policial afirma que a polícia está fazendo a sua parte na guerra, enquanto o antropólogo declara que a polícia apenas “entra e sai” das favelas — e os traficantes não saem de lá.

É divergência importante. Se Rubem está certo, ele também teria um pedaço de razão ao admitir que os líderes locais precisam “interagir com os que se dizem donos do lugar”. Pena que insista na expressão ambígua: o que significa “interação” nesse contexto?

No fim das contas, o importante no confronto entre os dois artigos é a descoberta — espero que seja isso, e não apenas torcida — de que tanto a autoridade como o cientista social parecem decididos a não ampliar as áreas de divergência. Deduz-se que elas poderão até começar a encolher. Dependerá, em parte, do que acontecer no caso do líder da Rocinha acusado de excesso de interação com traficantes. Não servirá à Justiça ou ao interesse público que se use o episódio para dar um exemplo de rigor, nem que se exagere na leniência para não fazer marola.

Basta uma solução justa. William da Rocinha certamente não precisa, por exemplo, da generosidade com que há dois anos (o governo estadual estava nas mesmas mãos de hoje) foi tratado o notório Chiquinho da Mangueira.

Para quem se esqueceu: um oficial da PM de reputação impecável acusou Chiquinho de ser intermediário de um pedido à Polícia de camaradagem com traficantes. O oficial acusador foi para o desterro e o Palácio Guanabara barrou todas as tentativas de apuração do caso, inclusive na Assembléia Legislativa.

Desta vez, ninguém está pedindo camaradagem — e ninguém a está oferecendo. O que implicitamente se cobra e se oferece é sensatez em nome do interesse coletivo.


3 comentários:

ARTIGOS disse...

Desafios da vida real,,RUBEM CÉSAR FERNANDES

Em 2004, o Viva Rio desenvolveu 1.134 projetos locais em favelas e periferias pobres de 70 municípios do Estado do Rio de Janeiro. Destes, 468 foram realizados na capital, sendo a maioria nas zonas Norte (54%) e Oeste (27%) da cidade. Profissionais do Viva Rio entram, trabalham e saem de centenas de comunidades violentas todos os dias. As ações são executadas em parceria com organizações comunitárias locais, que assumem a responsabilidade pela gestão diária dos projetos e pelo seu relacionamento com a comunidade. No ano passado, trabalhamos com 1.380 instituições parceiras ( www.vivario.org.br , seção “Prestação de Contas”).

O Viva Rio segue uma norma rígida de não negociar as condições de seu trabalho com os grupos armados que dominam as comunidades. Não fazemos contato direto com bandidos, nem com a polícia mineira. Decidimos assim faz tempo e recebemos, em retorno, a graça de não termos uma só pessoa nossa ferida ou morta em conflito. Por outro lado, são inúmeras as histórias de participantes locais que foram, sim, vitimados. Esta diferença nos angustia, pois sabemos que os nossos parceiros, sem os quais nada se faria, precisam interagir com os que se dizem donos do lugar. Sejam eles sacerdotes, agentes culturais ou líderes de associações, não podem deixar de relacionar-se com quem ali, pelas armas, tem o poder sobre a vida e a morte das pessoas. Preservamos nossa segurança (alguém diria “integridade”) à custa do risco de nossos parceiros.

O risco resulta da esquizofrenia de viver sob dois senhores, o legal e o ilegal, mas ele aumenta exponencialmente devido à instabilidade destes domínios. Via de regra, a polícia entra e sai. Não está fora, mas a rigor também não está dentro. As facções criminosas, por sua vez, sim, estão dentro, disputam entre si com violência. As pessoas nascem, crescem e morrem em meio à alternância de poderes despóticos imprevisíveis.

Particularmente crítica é a situação das associações de moradores. Na maioria das favelas, quase nada se faz pelo bem público que não passe pelas associações. Luz, água, correios, coleta de lixo, registro (informal) de propriedade, confirmação de endereço para crediários, intimações judiciais, tudo se resolve por intermédio da associação. Queimou o transformador? Furou o cano? Vem uma autoridade visitar? Autorização para o baile? Chama a associação! Elas se encontram, pela natureza do seu trabalho, no centro das tensões entre os poderes legal e ilegal que atuam no local. Trabalho importante, um patrimônio de nossa institucionalidade democrática, mas muito complicado.

Encontramos diversos tipos de líderes que se dispõem a enfrentar o desafio. Há gente sem expressão, que mal dá conta das demandas administrativas. Mas há também gente de peso, que consegue abrir um espaço próprio de protagonismo para a sociedade civil local. Entre os extremos, uma variedade de histórias e posturas. Quem diz que “todas as associações estão na mão do tráfico”, sugerindo com isto que, no fundo, são todas iguais e não confiáveis, simplesmente não sabe o que diz.

Neste nível obtuso de generalidade, prefiro a afirmação inversa: apesar das lideranças que estejam na mão do tráfico (que as há), todas as associações são importantes para a institucionalidade democrática nas favelas.

Pelo que conheci do trabalho de William Oliveira na Rocinha em 2004, ele se destaca, justamente, pelo sucesso na abertura de um espaço de atuação da sociedade civil em meio aos conflitos. Deu-se a ele o nome de “Fórum Dois Irmãos”. Conseguiu-se, graças a este fórum, aproximar líderes do morro e do asfalto, produzir um consenso explícito no enfrentamento dos problemas, atrair investimentos sociais, negociar propostas amplas de segurança para a Rocinha, de forma pública, com o comando do batalhão local e com a Secretaria de Segurança Pública. Não é banal.

Não pretendo, contudo, demorar-me aqui na discussão deste caso. Está na Justiça e os seus procedimentos devem ser respeitados. Proponho, ao invés, levantar a outra ponta da linha: a sociedade do Rio de Janeiro precisa conhecer, discutir a sério e apoiar as associações de moradores das comunidades conflagradas. Sem elas, os serviços públicos nas favelas, incluindo a mediação de conflitos, entrariam em colapso, com gravíssimas conseqüências para toda a cidade.
RUBEM CÉSAR FERNANDES é antropólogo e diretor do Viva Rio.
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ARTIGOS disse...

Insurreição pela cidadania,,MARCELO ITAGIBA

A cidade do Rio de Janeiro tem hoje mais de 650 favelas. No ano 2010, elas concentrarão 21,1% da população (1,4 milhão de pessoas), segundo projeção do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS). Esta perspectiva de degradação social nos remete à deterioração da cidade e, por conseguinte, da possibilidade da boa convivência urbana. As favelas não são um problema criado por aqueles que não tinham onde morar, mas sim a solução por eles encontrada para suprir a inexistência de uma política habitacional que, somada à total falta de oportunidades sociais, vai aumentando cada vez mais o fosso que nos afasta de uma existência pacífica.

O avassalador processo de favelização da cidade, acrescido do tempero da droga, potencializa a violência e exige, urgentemente, a revisão de conceitos equivocados segundo os quais somente o organismo policial tem responsabilidade pela segurança do cidadão. Polícia não é solução para problemas sociais; é onde transbordam os problemas sociais não resolvidos que, cumulativamente, geram a desvalorização da vida humana e a banalização do crime. As polícias Civil e Militar estão fazendo a sua parte. Nos últimos dois anos, realizaram mais de 45 mil prisões, retiraram de circulação 75 líderes do tráfico e apreenderam mais de 30 mil armas nas mãos de criminosos.

É inadiável o reconhecimento de que, além de ações policiais, segurança pública exige intervenções econômicas, políticas e sociais que promovam a redução dos níveis de miséria e o aumento das oportunidades na educação e no trabalho. E mais do que isso: não haverá solução definitiva, se as ações de desmantelamento do tráfico não partirem efetivamente dos moradores das favelas. A transformação terá de surgir de dentro para fora, de fora para dentro. De todos com o Estado.

É hora da insurreição pacífica e cidadã dos moradores. Em cooperação com o Estado, é preciso impor barreiras ao crime, denunciando anonimamente os facínoras que os oprimem e os maus policiais que os desrespeitam. A maioria tem que derrotar a minoria. Contra as armas dos traficantes, vamos construir uma rede de solidariedade que, por meio da informação e da denúncia, irá destruí-los. Para a diminuição da taxa de criminalidade, todos devem ter a capacidade de se preocupar e agir em defesa da sua rua, do seu vizinho, da sua comunidade e, por fim, da sua cidade.

A Rocinha é a maior favela da Zona Sul do Rio de Janeiro; é o retrato sociológico do Brasil, abrigando uma diversidade humana composta 99,9% de pessoas honestas distribuídas em diversas classes sociais ? miseráveis, assalariados, pequenos comerciantes e até médio empresários. Sua localização privilegiada e estratégica a torna uma das jóias da coroa na disputa entre traficantes pelo seu domínio. Ela é a grande abastecedora da elite burguesa que, com seu vício, financia a compra de armas de guerra que vitimam toda a sociedade. Além disso, infelizmente, a favela está se tornando, também, um reduto consumidor importante. Os seus moradores, contudo, são os que mais sofrem com a violência imposta por traficantes que, por meio do terror e da exploração econômica, barbarizam a comunidade, como se fossem senhores feudais.

Desde a tentativa de invasão da Rocinha por grupos rivais, muitas ações policiais vêm sendo realizadas para desestruturar o tráfico e garantir a paz aos moradores. Líderes de quadrilhas e integrantes dos bandos foram presos ou mortos em confronto com a polícia, que já perdeu na favela três valorosos policiais da unidade de elite da PM, que deram suas vidas em defesa da sociedade.

O único objetivo das investigações que levaram à prisão de policiais e moradores flagrados em relação promíscua com o tráfico foi o da política de segurança pública propriamente dita que, com as suas ações, combate o crime, prendendo as que se acumpliciam com o mal e apoiando as pessoas de bem. A polícia do Rio e os moradores precisam aliar-se para varrer das favelas os bandidos.

Somos todos nós contra eles, os criminosos.
MARCELO ITAGIBA é secretário de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

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