Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, março 03, 2005

Folha de S.Paulo - Vitória da Argentina PAULO NOGUEIRA BATISTA JR. - 03/03/2005

"Um triunfo político para o presidente Néstor Kirchner." Assim se referiu a revista "The Economist" à recém-concluída reestruturação da dívida argentina. A operação foi realmente excepcional. O deságio médio, da ordem de 70%, representou o dobro do alcançado em reestruturações recentes de outros países que entraram em moratória. Kirchner, eufórico, declarou que o seu governo fez "a melhor negociação da história mundial".
O presidente argentino tem motivos de sobra para comemorar, mas não houve propriamente negociação. A Argentina apresentou a seus credores um contrato de adesão, numa base "take-it-or-leave-it". Depois de muitas ameaças, pressões e previsões sombrias, a grande maioria dos credores resolveu "take it". A adesão acabou superando as expectativas.
O sucesso da Argentina resultou da combinação de coragem e competência que vem caracterizando não só o tratamento da questão da dívida mas o conjunto da sua política econômica. Apesar da moratória e dos duros embates com o FMI e os credores externos, o desempenho da economia argentina tem sido fora do comum. O PIB cresceu quase 9% ao ano em 2003 e 2004. A rápida recuperação da economia não impediu que a inflação permanecesse sob controle. A taxa de inflação (preços ao consumidor) passou de 41% em 2002 para 4% em 2003 e 7% nos 12 meses até janeiro de 2005.
Os bons resultados refletem, é claro, o aproveitamento da capacidade produtiva ociosa acumulada durante a recessão e as condições internacionais favoráveis de 2003 e 2004. Mas eles não teriam sido possíveis sem a flexibilidade que caracteriza a política econômica argentina.
O superávit fiscal primário registrado em 2004, o mais alto das últimas décadas, foi suficiente para cobrir toda a despesa financeira e ainda gerar um resultado nominal superavitário nas contas da administração nacional. No entanto, o governo argentino rechaçou a exigência do FMI de que fossem aumentadas as metas para o superávit primário.
Obviamente, o resultado nominal superavitário não teria sido possível se a Argentina praticasse juros extravagantes como os brasileiros. Atualmente, a taxa de juro nominal de curto prazo é de 4,4% ao ano e vem sendo sempre muito inferior à brasileira. Com juros semelhantes aos nossos, o crescimento da economia teria sido menor, dificultando o aumento da arrecadação tributária e a geração de superávits fiscais primários. E o custo da dívida pública teria sido maior.
Maiores seriam, também, as pressões para a apreciação cambial. O Banco Central da Argentina tem resistido a essas pressões, preocupando-se em sustentar uma taxa de câmbio competitiva. A apreciação do peso com relação ao dólar foi moderada até agora. Considerando uma cesta de moedas relevantes para o comércio exterior argentino, ocorreu até uma pequena depreciação real no ano passado. Para conter a valorização do peso, o BC tem acumulado reservas internacionais, esterilizando parte do impacto monetário da compra de divisas com emissão de títulos a juros moderados. No Brasil, o custo fiscal da formação de reservas é muito alto, em razão dos juros praticados pelo Banco Central.
As circunstâncias do Brasil são diferentes. Não convém simplesmente imitar a Argentina no que diz respeito ao tratamento da dívida ou outros aspectos da política econômica.
Não obstante, uma coisa parece clara: a experiência da Argentina contrasta de maneira notável -para não dizer constrangedora- com o conservadorismo rotineiro e amedrontado da equipe econômica do governo brasileiro.

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