Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, março 02, 2005

Folha de S.Paulo - Democratização do capital PAULO RABELLO DE CASTRO- 02/03/2005

A aversão das elites ao povo compartilhando algum poder econômico ainda é predominante. O curioso é que as instituições políticas emanadas do povo tampouco se sintam pressionadas a mudar o padrão arcaico-patrimonialista e, portanto, de direita, como recentemente diagnosticou o senador Jefferson Peres (PDT-AM) em magistral texto para esta Folha ("Tendências/ Debates", 24/02/05, pág. A3). Como tão bem apontou o senador do Amazonas, a luta que se trava no Brasil é sobre quem -e de que modo- apropriará o maná que brota das articulações entre o aparelho estatal e os atores privados, postados em setores-chave.
Ao elevar a carga tributária e insanamente refugar o protesto sobre a inabsorvível MP 232, o o governo conduz nova articulação público-privada que, pela frente, diz tentar fechar o déficit público de 2005: e, por trás, fecha a porta do acesso econômico e da acumulação legítima a centenas de milhares de pequenos empresários brasileiros, que se propõem a trabalhar, em vez de viver de juros, como usufrutuários da máquina financeira do Estado. Esse é o verdadeiro debate sobre a exclusão econômica. Quem financiou o governo na rolagem de sua dívida interna, durante os 11 anos do Plano Real, conseguiu apropriar-se de bolada equivalente a quase metade do valor líquido dessa dívida hoje, algo próximo de R$ 350 bilhões, tão somente como excesso de juros pagos, ano após ano, aos detentores de papéis públicos.
A política dos juros altos produz outras tantas dimensões da exclusão, como principalmente a dificuldade de valorizar o fator trabalho pelas remunerações assalariadas. O Partido dos Trabalhadores tinha várias propostas redistributivas. No poder, entretanto, o PT parece encabulado de enfrentar esta grande questão republicana: o acesso ao capital. Há mais de dez anos, na crítica do processo de privatização que, então, mal se iniciava pela venda da Usiminas, dois jovens quadros do PT -Mauricio Borges e Fernando Pimentel, este último hoje prefeito de BH, eleito em 1º turno- apresentaram ao partido proposta de democratização do capital estatal, pela ampliação da base de participação no capital, não só aos empregados da empresa privatizável mas a todos os brasileiros que quisessem dele participar. Foi proposta derrotada dentro do PT, com voto vencido do próprio Lula.
Hoje, no poder, o PT tem uma chance mais clara de mostrar que não foi cooptado pelo magneto patrimonialista. O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) é relator de um projeto, acessório à lei de recuperação judicial de empresas, que, se bem elaborado, poderá atribuir aos trabalhadores certos incentivos de natureza fiscal na conversão de seus créditos -especialmente os previdenciários e do FGTS- em capital societário da empresa reestruturada. Esse é o caso dos empregados da Varig, cuja crise se arrasta há três anos e só agora apresenta contornos de uma solução possível.
Os empregados da Varig são o seu maior credor coletivo, representado por créditos de R$ 2,2 bilhões que a empresa simplesmente deixou de depositar no fundo de pensão dos seus mais de 15 mil colaboradores. O interesse coletivo desses aeronautas e aeroviários é agora comprar a empresa com esses créditos e operar sua reestruturação com a participação de novos investidores, inclusive de pequenos aplicadores pulverizados no mercado de capitais. É, ou seria, a verdadeira democratização do capital, realizada, na prática, como solução de mercado em benefício do interesse de consumidores (mais concorrência) e contribuintes (nenhum subsídio público), enfim, em prol de uma filosofia de inclusão econômica já despertada na sociedade brasileira.
O grande desafio do PT continua sendo não permitir que seu distributivismo utópico o impeça de enxergar as oportunidades práticas de transformar a realidade social, democratizando o capital empresarial com as ferramentas do próprio mercado.

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Folha de S.Paulo - Ser de esquerda é ser republicano- 24/02/2005

A desintegração da União Soviética abalou seriamente a tradicional dicotomia que, desde a Revolução Francesa, dividia o cenário político em dois campos nitidamente diferenciados.
A partir de então, vai se tornando consensual a certeza de que, no mundo atual, não existem alternativas válidas ao Estado democrático de Direito, no terreno político, e à economia de mercado, na esfera econômica. Ficam reduzidos à condição de sobreviventes nostálgicos, sem perspectiva de poder, aqueles que ainda acreditam na revolução como meio e no socialismo como fim. Afirmação que faço como constatação, sem juízo de valor e sem desejo de polemizar. Afinal, cada um tem o direito de acreditar no que quiser.

Se ser de esquerda é lutar pela republicanização do aparelho estatal, ser de direita será praticar o velho patrimonialismo


Mas, à exceção desses, os esquerdistas de todo o mundo, Brasil no meio, não se iludem quanto à falta de alternativas e buscam, perplexos, um caminho e uma identidade, muitos a se perguntarem se ainda faz sentido a velha dualidade.
Parece-me importante travar e aprofundar essa discussão em nosso país, quando nada para que desapareça a confusão atual e as posições voltem a adquirir nitidez no espectro político. Por isso, trago hoje a minha modestíssima contribuição ao debate, apenas para provocá-lo, portanto, de forma despretensiosa e sem preocupações metodológicas ou conceituais.
Entendo que a validade ou não da divisão dicotômica entre esquerda e direita depende do contexto. A mim parece claro que não mais se justifica a não ser por apego à tradição nos países do chamado primeiro mundo, que já alcançaram o estágio de equilíbrio sistêmico. Vale dizer, países de sólidas instituições políticas, de economias maduras e que lograram eliminar a extrema pobreza. Nesses, a disputa política deixou de ser ideológica, para se travar em torno de personalidades e/ou prioridades de governo. Os programas são tão semelhantes que, se mudados os rótulos dos partidos, seria impossível distinguir os destros dos canhotos.
Não é assim nos países menos desenvolvidos, mesmo nos emergentes, como o Brasil, nos quais prevalece talvez a dicotomia, tendo em vista que subsistem graves problemas políticos, econômicos e sociais, a permitir diferentes caminhos para a sua superação. Mas, admitida a validade da díade, resta definir o que é ser de direita ou ser de esquerda, excetuados os radicais, autodefinidos pelo apego às fórmulas do passado.
A questão se complica ainda mais se considerarmos que, além do consenso quanto aos sistemas político e econômico, começa a haver também concordância geral quanto à política macroeconômica fiscal, monetária e cambial, com divergências mais de grau do que de natureza. Tantos consensos políticos tornam um desafio responder à pergunta: afinal, no Brasil de hoje, o que é ser de esquerda? Haverá obviamente muitas respostas.
Na minha visão, ser de esquerda, no Brasil contemporâneo, é ser republicano. Não no sentido estrito de partidário da república como forma de governo, em contraposição à monarquia, mas no sentido etimológico, muito mais abrangente. Ser republicano é ter uma postura de respeito à coisa pública, encarada como instrumento de realização do bem comum. Em nosso país, teria um conteúdo revolucionário a republicanização do Estado, vítima de um processo de privatização que já dura quase 500 anos. Implicaria uma profunda mudança institucional e cultural no âmbito do Estado e da sociedade. O aparelho estatal teria de ser regido rigorosamente pelos princípios constitucionais da moralidade, da impessoalidade e da eficiência. Nos três Poderes.
O Executivo, liberto do aparelhamento partidário e tocado por um corpo profissional, recrutado e motivado pelo sistema de mérito, seria um efetivo provedor de bons serviços para toda a população.
O Legislativo, liberado das medidas provisórias e escoimado do fisiologismo, seria um efetivo legislador e fiscal do governo.
O Judiciário, expungido do corporativismo e do formalismo, seria efetivamente uma instituição a serviço da Justiça, levando a prestação jurisdicional até os excluídos.
Essa utopia possível, a um tempo tão simples e tão difícil, só poderia ser realizada por um movimento político com forte enraizamento na sociedade, conduzido por líderes respeitáveis, movidos por um inarredável compromisso ético e por um profundo senso de responsabilidade social.
Mas, se ainda existe uma esquerda, obviamente haverá de existir uma direita. Então, perguntar-se-á: como defini-la? Não será em termos teóricos. Com as transformações históricas, a velha esquerda petrificou o pensamento e a nova não conseguiu elaborar outro. Quanto à direita, simplesmente deixou de pensar, talvez por desnecessidade.
Creio que a definição se fará, em termos práticos, em torno da postura diante do Estado. Se ser de esquerda é lutar ativamente pela republicanização do aparelho estatal, vale dizer, pela sua desprivatização, ser de direita será praticar o velho patrimonialismo, estudado por Octávio Paz e Raymundo Faoro, que consiste em confundir o público com o privado.
Em suma, no Brasil de hoje, direita é sinônimo de patrimonialismo, e esquerda, de republicanismo.
Jefferson Péres, 72, advogado, senador pelo PDT-AM, é o líder do partido no Senado.

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