Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, fevereiro 08, 2005

Demérito universitário DENIS LERRER ROSENFIELD

Demérito universitário

DENIS LERRER ROSENFIELD



Se há um ponto de consenso entre as universidades de alto nível em qualquer lugar do mundo é que o mérito deveria ser o único critério de conhecimento. Um pensador da esquerda democrática, Norberto Bobbio, é preciso a esse respeito: “Na escola, que não pode deixar de ter uma finalidade seletiva, o critério de mérito é exclusivo.” Alia-se a ele um outro pilar do ensino superior: a liberdade de ensinar e conhecer. Quando restrições começam a ser feitas, concernentes ao mérito e à liberdade, a própria função da universidade é questionada.

O projeto de reforma universitária proposto pelo MEC é cheio de “truques”, que visam a enfraquecer os pilares de uma universidade livre. Quando se refere à “gestão democrática” das atividades acadêmicas, ele procura politizar decisões que deveriam ser fruto do avanço do conhecimento, do progresso na formação dos estudantes, traduzindo-se em maiores bens para a sociedade em geral. Uma proposta como essa tem ainda o benefício de captar o apoio de sindicatos e corporações universitárias, cuja preocupação principal se reduz à eleição direta para reitor. Observe-se que não há uma única universidade qualificada no mundo que considere a “gestão democrática” e a “eleição direta” para reitor critérios universitários e de conhecimento. Ademais, no caso brasileiro, a melhor universidade, a USP, é, segundo os critérios do MEC e das associações docentes e de funcionários, a menos “democrática”.

Outra pérola do projeto consiste em subordinar a criação de novos cursos e universidades e, inclusive, o conhecimento a “necessidades sociais”. Imaginem, então, um funcionário membro do partido (de escolha do ministro, pois ocupa um cargo comissionado) decidindo, com sindicatos, a função social da pesquisa, do ensino e da extensão. A pesquisa deve se fazer livremente, sem nenhum condicionante senão a seriedade e a qualidade do trabalho. Trata-se de um critério que não admite nenhuma derrogação, tendo no professor e no pesquisador os seus únicos árbitros. Se o governo tem interesse numa área de pesquisa determinada, o que é legítimo, ele dispõe das políticas das agências de fomento, como Capes, CNPq, Finep e Fundos Setoriais.

O projeto se aproveita também da penúria das IFEs para propor um aumento de recursos, sem nenhuma contrapartida do ponto de vista do mérito e do desempenho. A folha dos inativos sairia das universidades públicas, devendo o Tesouro assumir esse ônus, sem que seja especificado como. Ademais, as universidades teriam assegurado 75% da receita constitucionalmente vinculada à manutenção e ao desenvolvimento do ensino, além de terem a segurança de que os recursos anuais não poderiam ser inferiores aos do ano anterior. Consolida-se, assim, o status quo de cada universidade, independentemente do mérito e de qualquer avaliação séria. Se é bem verdade que as universidades públicas estão entre as melhores do Brasil, não é menos verdadeiro que algumas delas se encontram entre as piores. Como diferenciá-las do ponto de vista dos recursos? Onde se encontra, para conhecimento público, o ranking das universidades brasileiras, segundo critérios de mérito? A armadilha dessa medida consiste em que os reitores das IFEs tendem, por falta de recursos, a aprovar o projeto, pois são seus beneficiários.

O projeto tem, ademais, um nítido viés antiprivatista, como se as universidades públicas fossem do “bem” e as privadas, do “mal”. Ao mesmo tempo em que estipula uma série de medidas de controle das instituições privadas, cala sobre o desempenho sofrível de boa parte das instituições públicas. Por exemplo, o artigo 64, § 1, estipula que universidades e centros universitários privados devem ter a sua autorização de funcionamento renovada periodicamente segundo avaliação da qualidade de ensino. As IFEs prescindem de um tal mecanismo de “autorização”? O viés antiprivatista chega a ter a conotação própria de um nacionalismo estreito. Assim, o projeto assegura que pelo menos 70% do capital total e do capital votante das universidades privadas devem pertencer a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Ou seja, se Harvard ou Stanford pretendessem se estabelecer no país, estariam impedidas!
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS).

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