Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 15, 2009

Noturno, de Guillermo del Toro e C. Hogan

VEJA

Terrorismo sobrenatural

O cineasta mexicano Guillermo del Toro, de Hellboy, estreia 
como escritor com uma história de vampiros


Isabela Boscov

Chris Buck/Corbis Outline/Latinstock
MONSTROS DE FILME B
Guillermo del Toro: o demoníaco não é uma lenda – é o que os homens fazem uns aos outros

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Um Boeing 777 vindo de Berlim aterrissa normalmente no Aeroporto JFK, em Nova York. E então fica lá, parado na pista, às escuras, sem que se perceba sinal de vida das mais de 200 pessoas a bordo ou do próprio equipamento. Todas as agências governamentais convergem para a aeronave, suspeitando de terrorismo. Quando nada explode, e quando se constata que todos os passageiros e tripulantes estão mortos em seus assentos, como se nunca tivessem pressentido seu fim, hipóteses disparatadas começam a ricochetear. Mas nenhuma faz sentido. Isso porque, em Noturno(tradução de Sérgio Moraes Rego e Paulo Reis; Rocco; 464 páginas; 46,50 reais), o avião é uma versão contemporânea do Demeter, o navio de velas negras que, no Drácula do irlandês Bram Stoker, levava o morto-vivo Conde Vlad para a Inglaterra. Logo, Nova York ficará parecida com a Transilvânia. Os mortos se levantam, sedentos de sangue, e, por meio de um apêndice desenvolvido a partir de sua traqueia, aferroam e dessangram todos os que encontram – começando, sempre, pelos que lhes eram mais queridos em vida. Mas, na história concebida pelo cineasta mexicano Guillermo del Toro e assinada em parceria com o escritor Chuck Hogan, esses vampiros não têm beleza gótica nem sofrem de mal-estar existencial. São mais parecidos com zumbis de filme B: criaturas sem mente, que, como descobre o prota-gonista do livro, o epidemiologista Ephraim Good-weather, na verdade não passam de veículos para um vírus.

Está aí a razão pela qual a primeira metade de Noturno é tão envolvente e soturna – e pela qual sua segunda metade deixa tanto a desejar. Em filmes como os dois Hellboy e o belíssimo O Labirinto do Fauno, que fervilham com sua imaginação exuberante, erudita e crivada de angústia, Del Toro cria imagens sempre únicas e poderosas. No livro, contudo, o trabalho pesado ficou a serviço de um coautor – que recebeu de Del Toro uma sinopse detalhada. E o talento de Hogan para evocar imagens não tem nada de extraordinário. É possível que, em um filme dirigido pelo mexicano, a língua descomunal com que os vampiros arpoam suas vítimas parecesse tétrica e hedionda; nas páginas de Noturno, ela é só vagamente repulsiva, e um bocado pueril.

Muitos dos temas recorrentes de Del Toro, é verdade, ajudam a alicerçarNoturno, como o da monstruosidade da guerra. O vampiro-mestre que desencadeia esse apocalipse sobre Nova York se tornou profundamente corrupto por ter se alimentado tempo demais nos campos de extermínio nazistas – e, em Manhattan, é inexoravelmente atraído para as ruínas das Torres Gêmeas. O demoníaco, para Del Toro, não é uma lenda, uma abstração nem algo divino; é o que os homens fazem uns aos outros. Como Noturno é a primeira parte de uma trilogia, ainda se pode esperar uma correção de rumo – e que o ci-neasta prevaleça sobre o autor de thrillers. Aí, sim, aquele sentido agudo para o mal e o macabro que se percebe no início do livro talvez venha a se desdobrar plenamente.


LIVROS  

Trecho de Noturno, de Guillermo Del Toro
e Chuck Hogan

A lenda de Jusef Sardu

Era uma vez... um gigante – disse a avó de Abraham Setrakian. Os olhos do jovem Abraham brilharam, e ime-diatamente a sopa de repolho na tigela de madeira ficou mais gostosa, ou com menos sabor de alho. Ele era um garoto pálido, magro e doentio. Querendo fazer com que engordasse, sua avó sentava do outro lado da mesa enquanto ele tomava a sopa e distraía o neto contando uma história.

Uma bubbeh meiseh, "uma história de vovó". Um conto de fadas. Uma lenda.

– Ele era filho de um nobre polonês e se chamava Jusef Sardu. Era mais alto do que qualquer outro homem. Mais alto do que qualquer telhado na aldeia. Precisava se curvar muito para entrar em qualquer por-ta, mas essa altura toda era um fardo. Uma doença de infância, não uma bênção. O rapaz sofria. Seus músculos não tinham força para sustentar aqueles ossos compridos e pesados. Às vezes, até caminhar era uma verdadeira luta. Como bengala, Sardu usava um cajado comprido, mais alto do que você, com o punho de prata esculpido com o formato de uma cabeça de lobo, que era o brasão da família.

– E então, bubbeh? – disse Abraham, entre uma colherada e outra.

– Sardu encarava aquilo como seu destino na vida, e aprendeu a ser humilde, coisa que poucos nobres conseguem. Tinha muita compaixão pelos pobres, trabalhadores e doentes. Era especialmente querido pelas crianças da aldeia. Grandes e profundos feito sacos de nabos, seus bolsos viviam cheios de doces e brinquedos. Ele mesmo não tivera in-fância, pois igualara a altura do pai aos oito anos, e já aos nove era uma cabeça mais alto. Sua fragilidade e seu enorme tamanho eram uma fonte secreta de vergonha para o pai. Mas Sardu era um gigante gentil e ado-rado pelo seu povo. Diziam que ele olhava para todos lá de cima, mas sem rebaixar ninguém.

A avó meneou a cabeça, lembrando o neto de tomar outra colhera-da. Mastigando uma beterraba vermelha cozida, conhecida como "co-ração de bebê" devido à cor, à forma e aos fiapos semelhantes a veias, Abraham disse:

– E então, bubbeh?

– Ele também era um amante da natureza, e não nutria interesse pela brutalidade da caça... mas, como nobre e homem de posição, aos quinze anos foi levado pelo pai e pelo tio numa expedição de seis sema-nas à Romênia.

– Até aqui, bubbeh? – indagou Abraham. – O gigante veio até aqui?

– À região do norte, kaddishel. Às florestas escuras. Os homens do clã Sardu não vieram caçar porcos selvagens ou alces. Vieram caçar lo-bos, o símbolo da família, o brasão da Casa de Sardu. Eles caçavam um animal predador. As lendas da família Sardu diziam que comer carne de lobo dava a seus homens coragem e força. O pai do gigante gentil acre-ditava que isso poderia curar os músculos fracos do filho.

– E então, bubbeh?

– A jornada foi longa e árdua, além de muito prejudicada pelas más condições do tempo. Jusef lutava bravamente. Nunca viajara para lugar algum fora da aldeia e ficava envergonhado com os olhares que recebia de desconhecidos ao longo do caminho. Quando chegaram à floresta escura, a mata parecia viva em torno dele. Durante a noite, matilhas de animais percorriam a floresta, quase como refugiados deslocados de seus abrigos, ninhos e covis. Eram tantos animais que os caçadores não conseguiam dormir no acampamento. Alguns queriam partir, mas a obsessão do velho Sardu estava acima de tudo. Os lobos podiam ser ouvidos, uivando à noite, e ele queria muito um lobo para seu filho, aquele filho único cujo gigantismo manchava a estirpe Sardu. Era preciso livrar a casa de Sardu daquela maldição, casar seu filho e produzir muitos herdeiros sadios.

"Acontece que, ao perseguir um lobo, o pai de Jusef foi o primeiro a ficar separado dos outros, pouco antes de anoitecer no segundo dia. O pessoal passou a noite esperando por ele, e depois do alvorecer todos se espalharam para começar a busca. Acontece que à noite um dos primos de Jusef não voltou. E assim por diante, entende?"

– E então, bubbeh?

– Até que o único que restou foi Jusef, o menino gigante. No dia seguinte ele partiu e, numa área já vasculhada, descobriu os corpos do pai, dos tios e dos primos jogados na entrada de uma caverna subterrâ-nea. Os crânios haviam sido esmagados com grande violência, mas os corpos não haviam sido devorados, coisa que levou Jusef a supor que eles haviam sido mortos por uma fera de força tremenda, mas não por fome ou medo. O motivo ele não conseguia imaginar, embora se sentis-se vigiado, talvez até mesmo estudado, por algum ser à espreita dentro da caverna escura.

"O menino Sardu carregou cada corpo para fora da caverna e en-terrou todos profundamente. É claro que ficou severamente enfraque-cido por esse esforço, que lhe roubou a maior parte das forças. Ele ficou esgotado, farmutshet. Mesmo sozinho, amedrontado e exausto, à noite retornou à caverna, para enfrentar o mal que se revelava depois do es-curecer, vingar seus antepassados ou morrer tentando. Nós só sabemos disso devido a um diário que ele mantinha, e que foi descoberto na mata muitos anos depois. Essa era a última anotação."

A boca de Abraham estava aberta e vazia.

– Mas o que aconteceu, bubbeh?

– Ninguém sabe ao certo. Lá na casa do clã, as tais seis semanas viraram oito, e depois dez. Sem notícias, temia-se que todos os caça-dores houvessem se perdido. Foi formada uma equipe de busca, que nada descobriu. Então, durante a décima primeira semana, certa noite chegou uma carruagem de cortinas fechadas. Era o jovem senhor. Ele se fechou sozinho dentro do castelo, numa ala só com dormitórios va-zios, e raramente, se é que alguma vez, foi visto novamente. Na época, só boatos davam conta do que lhe acontecera na floresta da Romênia.

Os poucos que alegavam ver Sardu... caso fosse realmente possível acreditar nesses relatos... insistiam que ele se curara das enfermidades. Alguns até mesmo murmuravam que ele retornara possuidor de uma força enorme, compatível com seu tamanho sobre-humano. Contudo, era tão profundo seu luto pelo pai, pelos tios e primos, que ele nunca mais foi visto durante as horas de trabalho, e dispensou a maioria dos empregados. Havia movimento no castelo à noite, pois via-se o clarão das lareiras brilhando nas janelas, mas com o tempo a propriedade dos Sardu foi caindo no abandono.

"Mas, então, à noite... alguns alegavam ouvir o gigante caminhando pela aldeia. A criançada, principalmente, contava que ouvia o toque-to-que-toque da bengala dele. Sardu não usava mais aquilo para se apoiar, e sim para tirar as crianças da cama, oferecendo-lhes brinquedos e gulo-seimas. Os descrentes eram levados para ver os buracos no solo, alguns embaixo das janelas dos quartos: eram pequenos orifícios redondos, como se fossem feitos pela bengala com cabo de cabeça de lobo."

Os olhos da bubbeh ficaram sombrios. Ela olhou para a tigela, ven-do que a maior parte da sopa se fora.

– Então, Abraham, alguns filhos de camponeses começaram a de-saparecer. Corriam histórias sobre o sumiço de crianças também nas aldeias próximas. Até mesmo na minha própria aldeia. É, Abraham, quando menina, a sua bubbeh morava apenas a meio dia de caminhada do castelo de Sardu. Eu me lembro de duas irmãs. Seus corpos foram encontrados numa clareira no bosque, tão brancos quanto a neve ao redor, com os olhos abertos vidrados pela geada. Eu própria ouvi certa noite, não muito distante, o toque-toque-toque daquela bengala. Era um barulho tão forte e ritmado que puxei meu cobertor depressa sobre a ca-beça para me isolar. Depois passei muitos dias sem conseguir dormir.

Abraham engoliu o final da história junto com o resto da sopa.

– Grande parte da aldeia de Sardu acabou abandonada e virou um lugar amaldiçoado. Quando a caravana dos ciganos passava pela nossa aldeia vendendo artefatos exóticos, eles nos falavam de acontecimentos estranhos, assombrações e aparições perto do castelo. De um gigante que percorria a terra enluarada feito um deus da noite. Eram eles que nos alertavam: "Comam e fiquem fortes... ou Sardu virá pegar vocês."

Por isso é importante, Abraham. Ess gezunterhait! Coma e fique forte. Raspe essa tigela agora. Se não, ele virá. – Ela já voltara daqueles poucos momentos de escuridão, de lembranças. Seus olhos voltaram a ser vívi-dos, como sempre. – Sardu virá. Toque-toque-toque.

E Abraham realmente terminou a sopa, com todos os últimos fia-pos de beterraba. A tigela estava vazia e a história terminara, mas sua barriga e sua mente estavam cheias. Sua bubbeh estava feliz por ele ter comido, e, para Abraham, o rosto dela era a mais clara expressão de amor que existia. Nesses momentos a sós, junto à frágil mesa da família, eles estabeleciam uma comunhão íntima: separados por duas gerações, os dois compartilhavam alimentos para o coração e a alma.


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