Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 15, 2009

Mataram Euclides de novo Mauro Chaves



Por sua obra, sua visão de mundo e seu múltiplo engajamento (como jornalista, escritor, engenheiro, historiador, sociólogo, poeta) na vida pública nacional, Euclides da Cunha, morto nesta data há cem anos, sintetizou valores permanentes até hoje não bem digeridos pela intelligentsia brasileira. À sua formidável busca de excelência na expressão escrita, utilizando-se de todo o potencial semântico do vernáculo, atribuiu-se um preciosismo "decadentista". A seu fenomenal esforço de pesquisa em vários campos do conhecimento humano se atribuiu um "cientificismo" eivado de ecletismo positivista. E a tantas outras características de seus textos, marcados por excepcional qualidade de reflexão, atribuiu-se, ao longo destes cem anos, este ou aquele viés ideológico, conforme o que se pretendeu dizer das qualidades ou dos defeitos da República. Mas Euclides, tenha vivido ou não deslocado de seu tempo (como muitos acham), e por mais que criticasse certos traços de nossa formação histórica, acima de tudo era um intelectual apaixonado, que pretendeu descobrir, entender e valorizar, pelo esforço inegociável do conhecimento e da busca da verdade dos fatos, a terra e o homem do Brasil - percebendo entre ambos uma ligação indissociável.

Antes de acompanhar, como observador de guerra (enviado por este jornal) integrado ao Batalhão Paulista, o massacre final de Canudos, nos primeiros dias de outubro de 1907, Euclides já havia desenvolvido, em Salvador, um estudo profundo dos aspectos geográfico, geológico, botânico e zoológico da região, assim como dos antecedentes sociológicos do conflito. Neste ponto a releitura de Os Sertões, nos dias de hoje, nos mostra alguns diagnósticos de assustadora atualidade. Euclides combatia com contundência os desmatamentos e as queimadas, praticados por aqueles aos quais chamava de "fazedores de deserto". Trazia ele, então, o que hoje seria um dado desconcertante - e "politicamente incorreto" - sobre a origem das queimadas.

Está escrito às páginas 53 e seguintes de Os Sertões (6ª edição, Livraria Francisco Alves, 1923): "Começou isto por um desastroso legado indígena. Na agricultura primitiva dos silvícolas, era instrumento fundamental - o fogo. (...) O aborígene prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos. (...) Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. (...) Abriram-se desde o alvorecer do século XVII, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, compáscuos, sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora. (...) Abria-os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas lufadas violentas do nordeste."

E Euclides prosseguia falando daquilo que era (e continua sendo) nossa terrível contribuição para a alteração climática que já ameaça a sobrevivência da espécie humana no planeta: "Ora, estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa história. Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançavam, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos via-se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas." Então Euclides escreveu, numa frase tristemente premonitória: "Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos." E esse grande precursor do ambientalismo no Brasil - nunca valorizado como tal - faz uma síntese maior da tragédia de Canudos, nestes precisos termos: "O martírio do homem, ali, é o resultado de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida."

Quando me perguntou (em março de 2007) o que eu escrevia e lhe respondi que era meu discurso de posse na Academia Paulista de História (APH), na cadeira cujo patrono era Euclides da Cunha, minha vizinha, boa profissional e supostamente bem informada, indagou: "O corno?" Ela ali sintetizava no que se transformou, para o grande público e as novas gerações, a imagem do intelectual, profissional e homem público extraordinário que foi Euclides da Cunha. A tragédia passional que levou ao fim precoce de sua vida, contracenada por personagens medíocres, insignificantes, que roubaram a cena de sua biografia e deixaram em segundo plano a sua obra, teve como ponto culminante um desastrado seriado de televisão que resumiu sua vida a uma história policial. Assim como outro seriado resumiu dom João VI ao gordo que se empanturrava e lambuzava com coxas da galinha, Euclides passou a ser o corno que quando deixou de ser manso foi matar e morreu. Está bem que physique du rôle não seja algo tão fundamental numa interpretação, mas há limites. Uma figura de galã, como a do ator Tarcísio Meira, para representar um homem franzino e doente como Euclides da Cunha equivalia a dar a Jô Soares o papel de Jesus crucificado num seriado da Paixão de Cristo.

Justiça se faça: o tal seriado não foi o único responsável pelo assassinato da imagem de Euclides. Antes e depois dele, muito se tem escrito sobre a tragédia e pouco sobre a obra. Não se tem estimulado o público a conhecê-la diretamente, sem a interpretação (geralmente ideológica) de "especialistas". Assim é que mataram Euclides de novo. 

Arquivo do blog