Antes de acompanhar, como observador de guerra (enviado por este jornal) integrado ao Batalhão Paulista, o massacre final de Canudos, nos primeiros dias de outubro de 1907, Euclides já havia desenvolvido, em Salvador, um estudo profundo dos aspectos geográfico, geológico, botânico e zoológico da região, assim como dos antecedentes sociológicos do conflito. Neste ponto a releitura de Os Sertões, nos dias de hoje, nos mostra alguns diagnósticos de assustadora atualidade. Euclides combatia com contundência os desmatamentos e as queimadas, praticados por aqueles aos quais chamava de "fazedores de deserto". Trazia ele, então, o que hoje seria um dado desconcertante - e "politicamente incorreto" - sobre a origem das queimadas.
Está escrito às páginas 53 e seguintes de Os Sertões (6ª edição, Livraria Francisco Alves, 1923): "Começou isto por um desastroso legado indígena. Na agricultura primitiva dos silvícolas, era instrumento fundamental - o fogo. (...) O aborígene prosseguia abrindo novas roças, novas derrubadas, novas queimas, alargando o círculo dos estragos em novas caapueras, que ainda uma vez deixava para formar outras noutros pontos. (...) Veio depois o colonizador e copiou o mesmo proceder. (...) Abriram-se desde o alvorecer do século XVII, nos sertões abusivamente sesmados, enormíssimos campos, compáscuos, sem divisas, estendendo-se pelas chapadas em fora. (...) Abria-os, de idêntico modo, o fogo livremente aceso, sem aceiros, avassalando largos espaços, solto nas lufadas violentas do nordeste."
E Euclides prosseguia falando daquilo que era (e continua sendo) nossa terrível contribuição para a alteração climática que já ameaça a sobrevivência da espécie humana no planeta: "Ora, estas selvatiquezas atravessaram toda a nossa história. Ainda em meados deste século, no atestar de velhos habitantes das povoações ribeirinhas do S. Francisco, os exploradores que em 1830 avançavam, a partir da margem esquerda daquele rio, carregando em vasilhas de couro indispensáveis provisões de água, tinham, na frente, alumiando-lhes a rota, abrindo-lhes a estrada e devastando a terra, o mesmo batedor sinistro, o incêndio. Durante meses seguidos via-se no poente, entrando pelas noites dentro, o reflexo rubro das queimadas." Então Euclides escreveu, numa frase tristemente premonitória: "Imaginem-se os resultados de semelhante processo aplicado, sem variantes, no decorrer de séculos." E esse grande precursor do ambientalismo no Brasil - nunca valorizado como tal - faz uma síntese maior da tragédia de Canudos, nestes precisos termos: "O martírio do homem, ali, é o resultado de tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da vida."
Quando me perguntou (em março de 2007) o que eu escrevia e lhe respondi que era meu discurso de posse na Academia Paulista de História (APH), na cadeira cujo patrono era Euclides da Cunha, minha vizinha, boa profissional e supostamente bem informada, indagou: "O corno?" Ela ali sintetizava no que se transformou, para o grande público e as novas gerações, a imagem do intelectual, profissional e homem público extraordinário que foi Euclides da Cunha. A tragédia passional que levou ao fim precoce de sua vida, contracenada por personagens medíocres, insignificantes, que roubaram a cena de sua biografia e deixaram em segundo plano a sua obra, teve como ponto culminante um desastrado seriado de televisão que resumiu sua vida a uma história policial. Assim como outro seriado resumiu dom João VI ao gordo que se empanturrava e lambuzava com coxas da galinha, Euclides passou a ser o corno que quando deixou de ser manso foi matar e morreu. Está bem que physique du rôle não seja algo tão fundamental numa interpretação, mas há limites. Uma figura de galã, como a do ator Tarcísio Meira, para representar um homem franzino e doente como Euclides da Cunha equivalia a dar a Jô Soares o papel de Jesus crucificado num seriado da Paixão de Cristo.
Justiça se faça: o tal seriado não foi o único responsável pelo assassinato da imagem de Euclides. Antes e depois dele, muito se tem escrito sobre a tragédia e pouco sobre a obra. Não se tem estimulado o público a conhecê-la diretamente, sem a interpretação (geralmente ideológica) de "especialistas". Assim é que mataram Euclides de novo.