Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, agosto 05, 2009

Gás caro é o que não existe Adriano Pires

O ESTADO DE S PAULO


Na década de 1990, a necessidade crucial do ajuste fiscal, a menor polarização do debate político no País e a conjuntura internacional favorável impulsionaram um processo de privatizações e de desregulamentação de grandes dimensões na economia brasileira. Mudanças profundas no ambiente institucional foram necessárias para viabilizar um novo modelo de intervenção do Estado.

Na realidade, a ideia era que o Estado perdesse gordura e ganhasse musculatura. Para que isso ocorresse se criaram agências reguladoras tanto no âmbito federal como dos Estados. Tais instituições foram montadas com relativa independência decisória e financeira, visando a contrapor a fragilidade das entidades de governos anteriores, marcadas por forte interferência do Executivo e dos próprios segmentos regulados e carência de recursos.

As agências reguladoras contemplam, na maioria dos casos, setores marcados por forte economia de escala, alta intensidade de capital, longo prazo de maturação e ativos específicos, com custos irrecuperáveis. Essas características determinam contextos em que a existência de um único concessionário minimiza os custos da prestação dos serviços. Exemplos: redes de distribuição de gás natural e transmissão de eletricidade. Tendo em vista o poder de mercado dos provedores, a regulação é necessária para evitar preços e lucros de monopólio.

O caráter irrecuperável de parte dos custos, por outro lado, deixa os concessionários vulneráveis à mudança ex post da conduta regulatória. Ou seja, discrepâncias entre o acordado ex ante e o realizado ex post afetam significativamente as decisões de investimentos. O compromisso e a segurança jurídica, emanados dos dispositivos legais e das instituições, representam, desta maneira, a garantia contra o oportunismo e a inconsistência temporal.

No recente processo de revisão tarifária da Comgás, em São Paulo, alguns setores da indústria paulista contestaram os resultados, parecendo não entender que qualquer quebra das regras estabelecidas entre a agência reguladora e a concessionária compromete o plano de investimentos, a qualidade do serviço prestado e, em última instância, o consumidor final.

A atual posição desses setores de questionar o resultado da última revisão tarifária da Comgás é legitima desde que feita de forma técnica, aceitando as regras do jogo. A revisão da Comgás transcorreu em absoluta transparência, com a realização de duas audiências públicas e com todos os documentos disponíveis no site da agência. Qualquer tentativa de politizar o processo da revisão tarifária pode conduzir a um ambiente de maior instabilidade e deterioração das condições para o investimento, com implicações negativas para o crescimento da economia paulista. Durante todo o processo da revisão tarifária, todos tiveram oportunidade de se manifestar, criticando e sugerindo mudanças na documentação apresentada pela agência. O que não pode é agora, depois do jogo encerrado, acusar o juiz de não o ter conduzido dentro das regras preestabelecidas e com total transparência. Ou pior, depois do jogo encerrado, querer reiniciá-lo com novas regras, que levem ao resultado desejado por uma das partes.

Não há dúvida que a revisão tarifária ocorreu num contexto de crise econômica mundial, com os preços do barril do petróleo desabando e com a necessidade de a indústria brasileira manter a sua competitividade. Entretanto, setores ligados à infraestrutura não podem ter sua remuneração determinada por conjunturas de curto prazo. É bom lembrar que no caso do gás natural, enquanto a distribuidora só tem suas margens revistas pela agência reguladora a cada cinco anos, a Petrobrás tem total liberdade para fixar tanto o preço do transporte quanto o da commodity. Ou seja, no curto prazo o que faz sentido questionar é o preço do transporte e da commodity, que tem um enorme peso na tarifa final e é determinado por um monopólio desregulado.

Esperamos que o governo de São Paulo, que sempre mostrou - por meio da Comissão de Serviços Públicos de Energia (CSPE), sua antiga agência reguladora - que só a estabilidade das regras e o correto entendimento do papel da agência são capazes de incentivar o investimento em infraestrutura e, com isso, promover ganhos para o consumidor, não mude de atitude e jogue fora todo esse ativo ao deixar prevalecer o aspecto político sobre o técnico. A adoção de tarifas com critério político, entre outros malefícios, levou a Argentina a perder a condição de país exportador para se transformar em importador de gás natural.

Os diversos matizes que a questão da abertura das indústrias de rede à concorrência comporta demonstram grande complexidade ao longo do tempo, pois, além de envolver claros compromissos ideológicos, como o papel do Estado como regulador e/ou planejador, impacta decisivamente o status quo dos negócios já estabelecidos - e também determina a direção e o perfil dos novos projetos. Caso o objetivo seja termos no Brasil setores de infraestrutura maduros e desenvolvidos, é fundamental a inexistência de qualquer tipo de obstáculos à instauração de mercados concorrenciais, desde que amparados numa legislação objetiva e transparente e fiscalizados e regulados por uma agência reguladora com capacitação técnica e com direção autônoma e independente.

Caso queiramos que o marco regulatório seja um fator para a consolidação de uma estratégia que objetive o desenvolvimento sustentável da economia brasileira, é fundamental entender três mensagens-chave. A primeira é que não haverá crescimento sustentado da economia e promoção do bem-estar social sem a expansão dos investimentos em infraestrutura. A segunda é que uma maior participação dos capitais privados nos projetos de infraestrutura é fundamental diante das restrições existentes ao aumento dos gastos públicos. Por último, a atração de capitais privados para a infraestrutura somente ocorrerá com o estabelecimento de um regime regulatório crível, previsível e claro.

Adriano Pires é diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE)

Arquivo do blog