Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 09, 2009

Democracia de conveniência Gaudêncio Torquato

O ESTADO DE S PAULO

Um espetáculo deprimente e vergonhoso. Sinal de um tempo em que as misérias morais chovem a cântaros. Marca do ciclo de degeneração a que chegou o sistema político no Brasil. Essa é a observação que se pode fazer da primeira sessão do Senado após o recesso, quando o ex-presidente da República Fernando Collor, olhos esbugalhados, voz embargada, feições raivosas, solicitou ao senador Pedro Simon engolir as referências sobre ele. A designação litúrgica "Vossa Excelência", usada de maneira farta e enfática, parecia ter a intenção de ferir o interlocutor com um palavrão ou algo oposto ao majestoso conceito que a expressão denota. Se projetarmos o complemento da virulenta peroração no plano das metáforas - "faça delas o uso que julgar conveniente" -, vislumbra-se não apenas a dimensão semântica, mas os limites estéticos da ação sugerida pelo filho do senador Arnon de Mello.

O lamentável episódio - com sequência no meio da semana - demonstra, de forma cabal, que o debate político, chama do espírito democrático, continua a fazer parte do egocentrismo, da desconfiança e do ódio, que o timoneiro Simon Bolívar já identificara, há 200 anos, quando escreveu o libelo: "Não há boa-fé na América, nem entre os homens nem entre as nações; os tratados são papéis, as Constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida, um tormento." A desconfiança e o caráter patrimonialista impregnam nossa cultura política, limitando as lealdades individuais aos grupos de interesses e familiares. Tem sido assim ao longo da História. É isso que explica o familismo infiltrado na crise do Senado. Afinal de contas, o que está em disputa entre os contendores, oposicionistas, governistas e os que subiram no muro, como parece ser o caso dos petistas? A explicação mais frequente é de que se trata do jogo pela cadeira presidencial, a ser disputada no próximo ano. É plausível. Mas a disputa, inclusive a mais ferrenha, há de abrigar padrões para reger costumes políticos mesmo em democracias incipientes como a nossa. Evidências de transgressão chegaram ao conhecimento da sociedade. Precisam ser apuradas. A maioria parlamentar tem poder de arquivar recursos contra um de seus pares? Sim. Mas nem tudo o que é possível é moral ou ético. Eis a questão.

O que se procura implantar na via parlamentar e em outros espaços é o que se chama de "democracia de conveniência", cujo ideário se inspira no jogo de reciprocidades, nos moldes "eu aprovo e você me retribui". Aliás, esse modelo vem lá de trás. Políbio (205-125 a.C.) foi um dos precursores da tese da degenerescência da política. Referia-se ele a uma "democracia degenerada em demagogia", sistema assolado por apetites particulares, lutas partidárias, conflitos. Ao esboçar uma teoria cíclica da sucessão dos regimes políticos, a partir das visões de Platão e Aristóteles, o filósofo grego enxergou a tirania como ramo torto da monarquia, a oligarquia como desvio da aristocracia e a demagogia - que abriga o populismo latino-americano - como fruto podre da democracia. É quando a política substitui o pedestal de missão pelo balcão de profissão.

Pois é exatamente a loja que se instala na esfera política uma das causas da crise. É esse o vírus utilitarista que tem provocado a pandemia de escândalos que abate o corpo do Senado há bom tempo. Antônio Carlos Magalhães e Jader Barbalho renunciaram ao mandato de presidente da Casa em 2001. Renan Calheiros fez o mesmo no final de 2007. A força acumulada do senador José Sarney, com sua longa história política, não foi suficiente para livrá-lo da onda pandêmica. Poderá safar-se de efeitos mais danosos - como a renúncia - por conta da vacina recebida do presidente Lula. Mas a maioria que lhe dará sustentação é pequena para deixá-lo imune às manchas que já sujam sua imagem pública. Manchas ampliadas por conta de táticas erráticas como a de deixar que tarjas de censura voltem a tapar os espaços do noticiário de O Estado de S. Paulo, um símbolo da liberdade de imprensa no País. Transferir a culpa da crise para a imprensa, como fazem alguns senadores, é a mesma coisa que dizer que as TVs são responsáveis pela gripe suína. Pior é constatar que a degeneração dos costumes políticos parece ter aliados no sagrado altar da Justiça. Que diria Bacon, o mestre londrino, sobre juízes flagrados em falta com a integridade, que é a virtude por excelência da função que exercem? Recitaria o mantra: "Juiz, tenha cuidado, seja sutil e circunspecto, prepare o caminho para uma justa sentença, como Deus costuma abrir o seu caminho elevando os vales e abaixando montanhas."

O que resta ao Senado fazer para sair da crise? Realizar um radical processo cirúrgico para eliminar tumores que se espalham como metástases. Significa acabar com o nepotismo, direto ou cruzado, evitar a politicagem do compadrio. Enxugar a estrutura funcional. Abrir canais de transparência. Substituir a expressão "tropa de choque" - de conotação opressiva e militarista - por plêiade cívica. Senadores fizeram uso impróprio de verbas da Casa? Assumam a culpa e devolvam os recursos. Por que tanta prestidigitação para burlar a verdade? Simulação e dissimulação, quando descobertas, privam o homem da maior arma para defesa de sua identidade: o crédito e a confiança. Se as interlocuções divulgadas, conforme alegam implicados, não mostram ilegalidade, por que tanta preocupação em evitar a apuração das denúncias? E, por fim, resta fazer a reforma política, com a redefinição do papel do Senado e a inclusão de aspectos como a eliminação da execrável figura do suplente de senador sem votos. É inimaginável que um senador sem um único voto seja capaz de fazer valer, no Parlamento, sua ética pessoal sobre a ética coletiva.

O Senado cumpre, sim, importante papel ao fazer a representação dos Estados. Por isso mesmo, à Câmara Alta cabe a tarefa de cultivar princípios e valores que tornem seus integrantes tão excelsos quanto o nome da Casa que os abriga.

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