Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 02, 2009

Cerimônias alternativas de casamento

DA VEJA

Dois erros e uma gelada

Ao dar palpite num caso policial, Obama denuncia racismo, 
percebe que avançou o sinal e reúne os envolvidos para 
tomar cerveja e superar... superar... O que mesmo?


André Petry, de Nova York

BCarter/Demotix
NADA DE DESCULPAS Gates algemado (à dir.) e bebendo cerveja com o policial (de gravata vermelha), na Casa Branca: saída fácil

 

Depois de dois anos de campanha eleitoral sem pisar uma única vez na casca de banana da questão racial nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama escorregou e, à moda de Zeca Pagodinho, tentou consertar tudo com uma roda de cerveja. O caso começou na tarde de 16 de julho, quando Henry Louis Gates Jr., negro e conhecido professor de Harvard, voltou de uma viagem à China, pegou um táxi e, ao chegar em casa, encontrou a porta emperrada. Com a ajuda do motorista, forçou-a com o ombro. Uma moradora achou que podia ser uma tentativa de arrombamento e ligou para a polícia. O sargento James Crowley, branco, policial há onze anos, atendeu ao chamado e complicou algo aparentemente simples como descobrir que era apenas um morador tentando abrir a porta da própria casa. O sargento relatou que o professor se recusou a mostrar identidade e uma prova de residência. Aos gritos, Gates saiu-se com o clássico "Você sabe com quem está falando?". Crowley algemou-o e levou-o para a delegacia por "conduta desordeira". Solto depois de quatro horas, Gates se declarou vítima de racismo, dando como certo que só foi algemado e preso por ser negro.

O caso estava fadado a ter o destino das estatísticas, registrado apenas como mais um dos costumeiros casos de policiais que usam força exagerada contra suspeitos negros nas cidades americanas. A população negra dos Estados Unidos nunca foi tão rica, admirada e bem-educada como agora. A presença de Barack Obama na Casa Branca é apenas um sinal a mais dessas conquistas. Mas, nas batidas policiais, de modo geral, até que provem o contrário, os negros são ainda tratados como culpados. "Se você é negro / melhor não botar a cara na rua de noite / a não ser que queira confusão com a polícia", cantou Bob Dylan em Hurricane, a balada sobre Rubin Carter, pugilista negro que ficou dezoito anos na cadeia condenado em 1967 por um crime que não cometeu. Hurricane virou filme em 1999 com Denzel Washington no papel principal.

A notoriedade ao caso Gates, infinitamente menos grave que o de Rubin Carter, foi dada por Barack Obama. O presidente americano correu em auxílio do professor, de quem é amigo, e acusou a polícia de Cambridge de agir "estupidamente". O professor queria desculpas públicas da polícia. O sargento, admiravelmente firme diante do peso de uma acusação presidencial, disse que não tinha do que se desculpar e, numa contramarcha impensável em outro país que não os Estados Unidos, Obama voltou atrás. O presidente então telefonou para o sargento e aceitou a sugestão para todos tomarem uma cerveja na Casa Branca. De público, disse que talvez o professor e o policial tivessem se excedido. Na quinta-feira, os três, mais o vice-presidente, Joe Biden, sentaram-se sob uma magnólia e, por quase uma hora, beberam e conversaram.

A cúpula da cerveja, apelido dado pela imprensa ao encontro, virou uma pantomima em que todos simularam reunir-se num congraçamento para superar... o quê? Abuso policial? Discriminação racial? Conduta desordeira? A cúpula da cerveja serviu só para livrar Obama de uma gelada, na qual entrou supondo que as posições clássicas – o branco opressor, o negro oprimido – estavam nos devidos lugares. Na campanha, Obama evitou os espinhos da questão racial com grande habilidade. Desta vez, espetou-se com notável amadorismo, sem ter detalhes do que, de fato, acontecera na porta daquela casa em Cambridge. Falar de racismo parece ter sido apenas a saída mais fácil. Obama não defendeu o negro. Defendeu seu amigo. Seu amigo denunciou racismo, mas ajudaria mais se reivindicasse a inviolabilidade de seu lar e o direito garantido pela Primeira Emenda de ofender com palavras um representante do estado.

"A vitória de Obama indica transformação na dinâmica racial, mas é preciso entender o que mudou do ponto de vista estrutural e, mais importante, o que não mudou", diz Carla Shedd, da Universidade Colúmbia, que estuda a criminalidade e os negros. Por exemplo: Lucia Whalen, a mulher que chamou a polícia, negou ter dito que dois negros forçavam a porta, desmentindo o que o sargento pôs no seu relatório. "Fui chamada de racista, desdenhada e ridicularizada por coisas que nunca disse", desabafou ela, numa entrevista. Na gravação do seu telefonema à polícia, Lucia não falou em negros e teve o cuidado de dizer que não sabia se era arrombamento ou um morador tendo problemas com a chave. Terminada a entrevista, sua advogada disse: "Os três homens altamente tarimbados que agiram mal neste episódio vão tomar cerveja na Casa Branca, o que é bom. A única pessoa cujas ações no caso foram exemplares estará trabalhando em Cambridge". É um perfeito resumo do episódio.

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