Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Polícias, arapongas e o velhinho do avião : Alexandre Barros


O Estado de S. Paulo - 03/12/2008

Quantas polícias existem no Brasil? Pouca gente sabe. Há delegacias para mulheres, menores e minorias; entorpecentes, seqüestros, homicídios. Todos devem ser protegidos. A setorialização traz mais segurança, eficiência ou segurança mais barata? O que acontece se um homem qualquer é agredido por outro homem qualquer em frente à delegacia de mulheres? Provavelmente, nada. Por quê? Porque burocratas operam mentalmente em escaninhos limitados. À delegacia de mulheres pouco importa o que acontece com homens. Eles não são da sua seara.

Há também escaninhos burocráticos: uma polícia não pode invadir a jurisdição de outra. Se alguém morrer baleado numa rodovia federal, pena que deu o azar de levar o tiro na rodovia federal, se fosse na estadual a polícia estadual poderia ter feito alguma coisa. Fora da jurisdição, azar do baleado.

Nossa Polícia Federal se esmera em dar nomes exóticos às suas operações. Será a campeã mundial em originalidade? Será que é em eficiência? Invadiu ou revistou, legalmente ou não, ninguém sabe, os escritórios da Abin, que ninguém sabe a quem responde. Policiais e arapongas de vários matizes se acusam pelos jornais citando o envolvimento de outros personagens nisso ou naquilo. Como todos operam sob a proteção de um sigilo inexplicável, acaba-se só sabendo o que eles querem dizer.

Outro dia sentei-me numa poltrona C num vôo. Ao meu lado estava um velhinho de cara simpática. Não chegava a ser sorridente. Partimos e o velhinho tirou da sua pasta um calhamaço que eu não podia deixar de ver, dada a grossura. Abriu na primeira página e a primeira palavra que vi, em letras garrafais, foi: SECRETO.

Quem lê um documento secreto numa cadeira de avião em que mal cabe um corpo? Mas nossos olhos, por dádiva da natureza, não são limitados pelas dimensões da cadeira. O calhamaço era um plano de contingência para ações emergenciais no caso de uma crise no Brasil. E lá foi o velhinho lendo tranqüilamente. Quase pedi para dar uma olhada. Achei melhor não.

Mas meu olho rebelde de vez em quando via longas listas de autoridades, listas de órgãos governamentais e quiçá de pontos estratégicos. Estava angustiado. Que diabos esse velhinho estaria lendo? Se é um plano emergencial para o Brasil feito por uma agência governamental e é SECRETO (todas as páginas tinham essa palavras dentro de uma moldura em caixa alta no topo), com que dose de irresponsabilidade ele circula por aí afora com um documento desse teor?

E se o esquecesse no avião? E o diabinho que todos temos dentro de nós cochichava no meu ouvido: “Ele vai esquecer. Deixa que ele vai esquecer!” E se ele esquecesse? Eu deveria pegar ou estaria cometendo algum crime, sem saber? Se pegasse, deveria lê-lo? Ou entregá-lo a alguma autoridade? Que autoridade?

De repente, meus pensamentos ficaram mais turvos. E se o velhinho fosse um terrorista? Eu devia tomar alguma providência? Avisar à aeromoça? Ligar para o diretor da Polícia Federal quando chegasse ao destino e dizer que havia um velhinho ao meu lado no avião lendo um documento secreto que tanto poderia ser para me proteger quanto poderia ser para me atacar? Quem sabe eu deveria tentar o diretor Abin? Ou o Gabinete de Segurança Institucional? Ou, talvez, o ministro da Defesa?

E o que será que esse documento dizia a respeito do presidente Lula? Eu não tinha a menor idéia, mas o diabinho me dizia: “Diz cobras e lagartos!”

Não há delegacia especializada em crimes cometidos por funcionários públicos que andam por aí com documentos secretos. Nem uma para denunciar velhinhos terroristas com planos do que fazer em emergências no Brasil.

Por via das dúvidas, fui para casa e dormi intranqüilo por alguns dias. Dias depois, já mais calmo, chegando do trabalho no meu carro (no qual, felizmente, o único velhinho era eu), entrei na superquadra onde moro, em Brasília, e o primeiro prédio, logo na entrada, abriga vários ministros do Supremo Tribunal Federal e é guardado por pachorrentos seguranças que devem preocupar-se com a segurança de seus ministros (cada um se sente tão importante quanto mais valiosa acha que é sua carga).

Em frente a esse belo prédio jorrava uma cascata de água de um imóvel, amarelo, pacífico, ordinário hidrante de incêndio. Parei e pensei: puxa, os danos ao meio ambiente... Um minuto dessa água jorrando na sarjeta dava para um mês na minha casa. Mas os diligentes seguranças olhavam para o horizonte e não viam o desperdício do que a todos a mídia diz que é o líquido mais precioso do mundo. Não era jurisdição deles. Acho que estavam em alerta total para o caso de uma invasão de velhinhos terroristas (presumindo que o meu vizinho de poltrona fosse terrorista) ao ninho dos supremos magistrados do Brasil.

Parei o carro e liguei do celular para os bombeiros, no 193. Disse ao atendente onde estava e descrevi o hidrante desperdiçando a água na sarjeta dos ministros do Supremo. Respondeu-me quem atendeu: “Olha, isso aí não é com a gente, não. Liga pra Caesb (Companhia de Águas e Esgotos de Brasília), tá?”

Fui para casa, peguei um calhamaço parecido com o que o velhinho lia no avião, sentei-me e reli minha tese de mestrado, escrita em 1968, há 40 anos. Foi sobre burocracia.

O Brasil mudou muito. Naquela época havia muito menos polícias. Eram ineficientes. Se chamadas, não vinham mesmo. Como hoje, não tinham viaturas. Agora temos polícias demais que vivem se prendendo e se invadindo umas às outras. Escutando as conversas alheias, circulando vestidas de preto e mascaradas. Fuçando a vida de gente importante e não tão importante.

Para isso os impostos foram dos 13% do PIB em 1947 aos 40% hoje.

Só eu prestei atenção no velhinho do avião

Arquivo do blog