Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 07, 2008

Ressentimentos Merval Pereira


O Globo - 07/11/2008

Muito se tem falado sobre as proximidades entre a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos e Lula no Brasil, e o próprio presidente brasileiro vê semelhanças na trajetória de vida dos dois. Talvez a única similaridade entre as duas situações seja o fato de que tanto Obama hoje quanto Lula em 2002 simbolizaram um sentimento difuso de mudança que era latente nos dois países, mas catalisado pelos problemas econômicos. Fora isso, eleger um operário no Brasil tem quase o mesmo significado para nós que eleger o primeiro presidente negro nos Estados Unidos. Muito mais que raciais, nossos preconceitos são sociais.

Se Lula fosse um líder operário negro, teria muito mais dificuldades para chegar à Presidência, se é que chegaria um dia. No Brasil, Lula primeiro foi rejeitado por suas idéias radicais, e ele mesmo já admitiu que seria uma imprudência ter sido eleito em 1989. Mas ele mesmo diz que sentia uma tristeza imensa quando via que o povo não considerava votar num igual, por preconceito social.

Com seu imenso carisma e sensibilidade política, Lula foi se amoldando às exigências do eleitorado, aparando a barba e as idéias. A maior prova de que para chegar ao poder teve que mudar de imagem foi a contratação do publicitário Duda Mendonça, que, ao mesmo tempo em que retirava do candidato traços políticos radicais, criando a figura do "Lulinha Paz e Amor", também mudou-lhe o penteado e o terno, tornando-o palatável à maioria do eleitorado.

Se houvesse no Brasil um político negro com a postura elegante de Barack Obama, bom de negociação e de oratória, com título universitário e pós-graduação em Harvard, poderia ser eleito presidente da República sem questionamento sobre a raça. Um bom exemplo desse preconceito com raízes sociais é a candidatura de Celso Pitta a prefeito de São Paulo. Diretor da empresa de Paulo Maluf, apresentado como parte do establishment político, foi eleito sem que sua raça fosse questionada. E seu ostracismo político deve-se a acusações de corrupção que nada têm a ver com a cor da pele.

A desgraça de nossa sociedade é que ela não favorece a que uma criança pobre e negra tenha uma educação de base tão boa que lhe permita freqüentar boas faculdades, coisa que aconteceu com Obama, que cresceu num país que começou a dar oportunidades aos negros há apenas 44 anos, quando ele tinha 3 anos de idade.

Outra diferença entre os dois países: acredito que nos Estados Unidos "Joe, the plumber" ("Zé, o bombeiro"), personagem que o republicano McCain usou no final de sua campanha para exemplificar o americano médio que sofreria com as supostas taxações de um governo "socialista" de Obama, dificilmente poderia ter o sucesso de Lula, o metalúrgico, se se dispusesse a disputar a Presidência da República, pela falta de preparo intelectual, o que no Brasil pesou contra Lula apenas até determinado ponto.

As críticas à sua falta de preparo cultural são superadas pela idéia de que ele tem a sensibilidade popular para os problemas. Além, é claro, da indiscutível habilidade política.

Mas Lula vive se considerando discriminado pela elite brasileira e já revelou um ressentimento que parece não ceder nem mesmo diante de seus inegáveis sucessos. Sua relação com o sucessor e antigo amigo, Fernando Henrique Cardoso, é exemplar desse ressentimento.

Embora a esquerda latino-americana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, e o senador Barack Obama tenha tido um padrão de votos considerado em Washington como o mais liberal - o que nos Estados Unidos pode ser considerado "de esquerda" - de todos os membros do Senado no ano passado, o governo Lula preferia um futuro presidente republicano, porque seria "menos protecionista" e menos "próximo dos tucanos".

Se a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação, se não de amizade, também especial, nasceu entre Lula e Bush, que tem uma convivência mais amistosa com o atual presidente brasileiro do que a que teve com Fernando Henrique, que já declarou que sentiu "asco físico" por Bush.

Provavelmente Bush pressentia em Fernando Henrique uma rejeição intelectual que não acontece com Lula, cujo temperamento cordial é mais parecido com o dele. Seja por isso, ou por puro pragmatismo, Lula torceu pela reeleição de Bush, e agora gostaria de ver um republicano na Casa Branca de novo.

Ou então Obama, em cuja trajetória de vida vê semelhanças com a sua, e que é um democrata não ligado aos "tucanos", como os Clinton. Essa aproximação de Bush com Lula tem certamente as mesmas raízes. Recentemente, Bush sussurrou no ouvido do ministro da Fazenda, Guido Mantega, em uma reunião sobre a crise internacional, que gostava muito de Lula.

Brahmins, a mais alta classe do sistema de castas indiano, é como os descendentes das famílias wasps (brancos, anglo-saxões e protestantes) são conhecidos. Já contei aqui, mas vale repetir: George W. Bush derrotou John Kerry, um legítimo Brahmin de Yale, a quem Bush atribuía uma atitude arrogante em relação a ele, a mesma que os colegas estudantes tinham na universidade, onde os Brahmins valorizam mais o preparo cultural do que o dinheiro.

Os dois têm raízes na Nova Inglaterra, mas, enquanto Kerry costumava passar férias na casa dos avós, numa cidade do norte da França, Bush nunca havia saído dos Estados Unidos antes de ser presidente.


Na eleição do dia 4, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos foi eleito por 153,1 milhões de eleitores, sendo que os brancos representam nada menos que 74% ou 113,29 milhões. Desses, uma minoria, 43% ou 48,71 milhões, votou em Obama. Dos 13% - ou 19,9 milhões de negros, 95% votaram em Obama; e dos 8%, ou 12,25 milhões de hispânicos, 66% ou 8,09 milhões votaram em Obama.

Arquivo do blog