Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, novembro 10, 2008

Perdão DENIS LERRER ROSENFIELD

Hannah Arendt pensou o perdão como um valor central da vida política. Graças a ele, a convivência fraturada, próxima ao abismo do que se considera como atos humanos, pode ser reconstituída, dando início a um novo começo. Em algum momento, dentro do contexto de lutas das mais violentas pelo poder, uma linha divisória deve ser demarcada, pois, sem ela, a vida política ameaça recair no caos de vinganças sem rumo, impossibilitando a sociabilidade civilizada. A História oferece inúmeros exemplos de sociedades que se perderam — ou continuam se perdendo —, por terem desconsiderado essa lição básica: olhar para o futuro, e não se voltar para um passado, que espreita por mais retaliações. Olhando para a frente uma sociedade se reconstrói, olhando para o passado, ela se recusa a uma nova construção, contentandose com moradias destruídas.
A doutrina de Cristo prestou, mediante a valorização moral do perdão, uma contribuição inestimável à Humanidade. Indivíduos puderam ter um firme apoio a partir do qual ousaram reconstruir suas vidas, vendo no outro não alguém sempre objeto de uma vingança futura, mas que pudesse entrar numa relação de convivência pacífica, por maiores que tenham sido no passado as razões de discórdias e lutas. O outro, pelo perdão, passa a ser parceiro de um projeto comum, por maiores que fossem as desavenças subsistentes.
O importante, em todo caso, consiste num ato moral de pacificação, de mútuo perdão, de modo que a vida de cada um possa, enfim, recomeçar.
Quantas vezes presenciamos, em nossas vidas familiar e amorosa, a importância do perdão, para que desde simples mal-entendidos, até ofensas, possam ser vistos sob uma outra perspectiva moral, constituindo-se em novas oportunidades de vida. Quantas vezes relações de amizade são preservadas pelo uso do perdão, revelando uma genuína preocupação com o outro, tomado como amigo e parceiro a ser valorizado.
O recente debate sobre a validade da lei da anistia, com alguns procurando reabrir a questão, através de um viés ideológico de apropriação dos direitos humanos, mostra o desconhecimento, senão o desrespeito, para com o perdão, que inaugurou uma nova etapa da vida brasileira. Foi graças à lei da anistia, com o perdão que todos os partícipes se deram, que o país ingressou na vida democrática, que perdura até hoje, mostrando a sua vitalidade. Sem o reconhecimento do perdão, estaríamos reféns de retaliações das mais diferentes espécies, conduzidas por aqueles que alternadamente se sentissem poderosos para empreender tais tipos de ação. A transição brasileira para a vida democrática foi um exemplo para o mundo e, como tal, deveria ser preservada. Ela não denigre o país, mas, na verdade, o dignifica.
Alguns argumentos apresentados para justificar a dita revisão, em nome de um suposto valor universal atribuído aos que se consideravam guerrilheiros, vistos sob uma outra perspectiva como praticando atos de terror, não resistem minimamente a uma análise dos fatos. Colocar os que roubaram, seqüestraram e assassinaram como defensores da liberdade contra a democracia é, apenas, uma bandeira hoje inventada para justificar, retroativamente, tais fatos. Jamais lutaram pela democracia, mas pela instauração, no Brasil, de uma ditadura socialista ou comunista, como se queira dizer. Seus modelos eram Che Guevara, Fidel Castro e Mao Tsé-Tung, líderes e ditadores ferrenhos que não hesitaram em assassinar os que contestavam o seu poder. Jamais foram defensores da democracia. Eram liberticidas.
Os que lutaram pela democracia no Brasil têm outros nomes: Teotônio Villela, Ulysses Guimarães, Paulo Brossard, Franco Montoro, Mário Covas, Pedro Simon, Tancredo Neves, Jarbas Vasconcellos, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, entre muitos outros. Recusaram a violência e souberam fazer valer as suas posições por convencimento, resistência e manifestações.
A lista é necessariamente incompleta, porém convém lembrar esses nomes símbolos, para que não se diga que a única forma de “resistência” era a luta armada, quando esta era, na verdade, uma luta a favor de uma outra forma de ditadura.
Evidentemente, deveríamos acrescentar todos os parlamentares da antiga Arena, que, no novo partido então criado, o PFL, tornaram o projeto de transição possível, apostando nas liberdades e na democracia como valores maiores. Ora, nada disto teria ocorrido se os próprios militares não tivessem, eles também, apostado na democracia, sendo os fiadores e os garantes dessa transição.
Foram eles que concederam a anistia e a concederam enquanto vitoriosos e não como derrotados.
Fizeram-na tão ampla que foi além do que certos setores da oposição defendiam, dando aos vencidos a oportunidade de um novo começo.
Um ato desse tipo necessariamente envolve todos os lados, seqüestradores, assassinos e torturadores.
Teríamos preferido que tais atos de violência não tivessem se produzido, mas cabe tomá-los como ensinamentos do que não deve jamais se repetir.
Abrir essa ferida, pertencente ao passado, obrigatoriamente daria lugar a desdobramentos imprevisíveis, violando a reconciliação tão penosamente alcançada, fazendo do perdão algo sem valor.
Se não tivesse havido essa conjunção de políticos de horizontes distintos, alguns inimigos até pouco tempo atrás, o Brasil teria sido vítima de rancores e vinganças incessantes, que só produziriam fraturas e divisões, sem que pudesse se vislumbrar um novo futuro. Não teríamos tido como presidentes e vice Tancredo Neves e José Sarney, este vindo a assumir a Presidência, Fernando Henrique Cardoso e Marco Maciel, Lula e José Alencar.
De horizontes e formações distintas, souberam todos valorizar e defender a democracia, sendo os legítimos frutos e representantes de uma sociedade que soube se reconciliar com o seu passado, apostando no seu futuro.

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