NOVA YORK. Nada mais exemplar da maneira de fazer política do presidente Lula do que a diferença entre as atitudes do governo e seu linguajar populista na atual crise financeira internacional. Ao mesmo tempo em que vocifera contra o Banco Mundial, o FMI e o sistema financeiro internacional, que teria se transformado em um verdadeiro cassino segundo suas palavras, o presidente Lula vai inserindo seu governo cada vez mais profundamente na lógica da globalização financeira. Lula reclama em público do que seria um “tratamento privilegiado” que as agências de avaliação de risco dão aos Estados Unidos ou à Inglaterra, enquanto analisam com dureza os países emergentes como o Brasil, cujo risco subiu durante a crise, mesmo com reservas de US$ 200 bilhões e situação fiscal equilibrada.
Mas, como em questões fundamentais de economia Lula geralmente toma a opção correta, ao contrário do que bravateia, está alimentando o tal “cassino” em parceria com o Fed, o Banco Central dos Estados Unidos.
O diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, Dominique Strauss-Kahn, definiu com clareza a situação dos países emergentes se referindo a “uma certa ironia da história”, a de que atualmente é mais atraente repatriar aos países altamente industrializados o dinheiro investido nos últimos anos com altos rendimentos nas economias emergentes, por causa das medidas aplicadas pelos dirigentes dos países ricos para sustentar os bancos nacionais em dificuldades.
Os EUA, como gestores exclusivos da moeda reserva internacional, colocou em ação pelo mundo um programa de liquidez nas economias necessitadas que, dentro da lógica do sistema monetário e financeiro internacional contemporâneo, faz todo o sentido, na opinião de economistas.
Os países emergentes envolvidos nessa operação — Brasil, México, Cingapura e Coréia do Sul — são os mais inseridos na globalização, alguns com elevado grau de abertura financeira e todos com mercados de derivativos muito fortes.
Em todos eles houve operações de derivativos cambiais, como no Brasil, que prejudicaram empresas.
Operações realizadas pelos grandes bancos globais, que o presidente Lula criticou amplamente, primeiro fazendo a acusação errada, de que estariam apostando contra o Brasil.
Constatado o erro, já que empresas como Aracruz e Sadia perderam muito dinheiro justamente porque apostaram na manutenção do real valorizado, Lula passou a criticar genericamente a “especulação”. Só não explicou que os perdedores foram basicamente empresas nacionais, e a maioria dos ganhadores está no exterior.
Com a linha aberta pelo Fed, o governo Lula agora estará ajudando os estrangeiros que ganharam “na jogatina do cassino” a levarem seus recursos e lucros para o exterior. O que faz parte do jogo que estamos jogando, e não do jogo que Lula finge jogar.
Essas operações, que o Fed já faz desde 1961 e agora chegaram ao Brasil, não podem ser classificadas como empréstimos, pois não envolvem pagamentos de juros.
A linha para o Brasil tem validade de 6 meses. As moedas estrangeiras ficam depositadas no Fed e não são objeto de negociação, e, no caso do Real, seria inútil tentar vendê-los, por falta de comprador, pois nossa moeda não é conversível.
Na definição em economês, trata-se de um contrato para troca de moedas, um mecanismo estabilizador das taxas de câmbio, em relação ao dólar.
Desde o início da crise o Federal Reserve aumentou para US$ 900 bilhões seus acordos de troca de moedas com dez bancos centrais (Austrália, Canadá, Dinamarca, Inglaterra, Nova Zelândia, Japão, Noruega, Suécia, Suíça e Banco Central Europeu) para ampliar a liquidez em dólares nos mercados financeiros globais.
Estão dando liquidez em dólar, para garantir a passagem dos investidores que desejam reconverter seus investimentos para o dólar — e, assim, podem estabilizar as moedas, sem grandes desvalorizações.
Ao contrário dos antigos acordos com o FMI, não há condicionalidades nesses acordos com o Fed, o que tira deles um estigma político.
A revista inglesa “The Economist” noticiou em sua recente edição sobre a crise nos países emergentes que vários desses países procuraram o Fed em busca de apoio de liquidez, evitando ir ao FMI, que seria o canal mais adequado, mas politicamente inaceitável para alguns países.
Um desses países foi a Coréia, e por isso o Fed montou uma operação casada com o FMI, que, por sua vez, abriu sua linha de crédito para países de economia mais fraca e que não estavam em condições de bancar exigências ou ter pruridos políticos. Nesse ponto, o Brasil teve vantagens, pois pôde ser tratado como membro importante para o sistema internacional.
Mas, o que o Fed está fazendo, ao aprofundar a integração dos sistemas financeiros nacionais desses países emergentes com o sistema internacional, é inviabilizar que o agravamento da crise propicie o fortalecimento de forças políticas que defendam uma ruptura e a introdução de controles de capitais, por exemplo.
No caso do Brasil, essa intervenção é mais sintomática porque o país é o único cuja moeda não é conversível, e mesmo assim foi incluído no programa pelo tamanho da economia, mas talvez também pelo tamanho do problema de derivativos.
O volume de contratos de câmbio em aberto é de US$ 50 bilhões, segundo os dados oficiais da BMF. Não é tudo perda, mas é o tamanho da jogatina, como diria Lula. (Continua amanhã)
Entrevista:O Estado inteligente
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