Em vez de serem contra, empresas agora aprovam
o casamento entre funcionários. Casais produzem
mais – embora a conversa possa ser sempre a mesma
Sandra Brasil
Ernani D'Almeida |
"Já brigamos e moramos duas semanas em casas separadas. Mesmo assim, continuamos trabalhando juntos normalmente. Foi difícil, mas no fim isso facilitou a reaproximação." Rodrigo, que comanda um restaurante com a mulher, Ana Luiza |
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Em boa parte das grandes empresas, uma regra não escrita (ou, às vezes, até escrita) determinou durante muito tempo que, para não atrapalhar o bom andamento dos negócios, o relacionamento amoroso entre funcionários era desestimulado, indesejado ou penalizado – em caso de casamento, uma das partes podia até ser transferida para um lugar escuro e frio, ou seja, longe do centro do poder. Como não existe decreto que elimine a química sexual entre homens e mulheres, um bocado de gente atropelou a regra. Hoje, o pêndulo está voltando para o extremo oposto, a ponto de existirem empresas que apóiam casamentos internos. O motivo é uma constatação difícil de ser entendida por aqueles que tremem de horror à idéia de passar o dia inteiro com o cônjuge e depois dividir o leito com o mesmo colega de trabalho: o casal que trabalha junto produz mais, melhor e com menos atritos entre profissão e vida familiar. "A Carla entende os motivos de o celular estar sempre ligado, de eu levar constantemente trabalho para casa, de fazer hora extra e passar fins de semana na empresa", enumera Jayme Fonseca, 42 anos, diretor financeiro de uma construtora em São Paulo, onde sua mulher, Carla Barreto, 39, é gerente de planejamento. A influência positiva da associação entre casamento e trabalho sobre a produtividade foi comprovada numa pesquisa com 608 casais nessa situação, em Porto Alegre e São Paulo, realizada pelo escritório brasileiro da International Stress Management Association (Isma). "A pesquisa mostrou que essas pessoas tendem a render mais porque dedicam um tempo maior ao trabalho, lidam melhor com as demandas diárias do cotidiano e apresentam menos conflitos na relação entre o trabalho e a família", diz a psicóloga Ana Maria Rossi, que coordenou esse estudo. "Dos casais que atuavam na mesma ocupação, 80% registraram menos exaustão emocional e exposição ao estresse."
Edu Lopes |
"No começo as pessoas tiveram dificuldade em entender a nossa relação dentro da empresa. Acho que acabo exigindo mais dele que dos outros, para evitar esse tipo de problema." Ana Paula, dona de consultoria e chefe do marido, Eduardo |
A transposição da parceria profissional para a vida doméstica é menos animadora. "Se a empresa passa por alguma crise ou dificuldade financeira, a tensão contamina toda a família", adverte Ana Maria. "É natural que a gente fale muito de trabalho em casa", admite Jayme Fonseca. E, embora a empresa se beneficie em termos de rendimento, no ambiente de trabalho a situação não é um mar de rosas. Causa desconforto, por exemplo, a necessidade de manter absoluta discrição e não levar gestos e intimidades do cotidiano amoroso para o escritório. E, como em qualquer tipo de relacionamento – namoro, casamento ou aquelas outras coisas que vivem acontecendo no local de trabalho –, os não envolvidos no caso acompanham milímetro a milímetro, para ver se não há privilégios indevidos. Jayme e Carla já estavam juntos antes de terminar na mesma empresa, mas o máximo de intimidade que se permitem no trabalho é ter fotos de família sobre a mesa. "Tem colega que descobre que somos casados por causa disso", diz ele. E, quando os colegas descobrem, nem sempre sabem como agir. "Lembro de uma reunião em que defendemos posições divergentes com muita emoção. Os outros só ficaram olhando, esperando para ver no que ia dar aquilo, como se fosse uma briga de marido e mulher", conta Carla.
Leo Caldas/Titular | "Muitas vezes pergunto a opinião dela e ela me influencia. Inclusive dá um toque feminino às minhas decisões. Por influência dela, passei a ser mais duro com violência contra mulher." Valécius, juiz e marido de Thalynni, juíza |
"Os conflitos envolvendo privilégios, vinganças e outros interesses pessoais levaram à proibição do binômio casamento e relações de trabalho, que prevaleceu até o fim dos anos 90. De lá para cá, as empresas mudaram de atitude e, hoje, a maioria aceita casais", diz Betania Tanure, professora da escola de formação de executivos Fundação Dom Cabral, em Nova Lima, Minas Gerais, e autora do livro Executivos – Sucesso e inFelicidade. "As pessoas se conhecem no ambiente de trabalho e é natural que surjam relacionamentos amorosos na empresa. De maneira geral, as experiências que temos com casais são muito positivas", afirma Benedito Waldson, gerente de recursos humanos da mineradora Samarco, do Espírito Santo. A empresa instituiu um regulamento freqüente nesses casos: sempre designa marido e mulher para departamentos diferentes. "A única restrição que colocamos é não haver subordinação, porque entendemos que não há isenção entre marido e mulher, e o fato de um ser chefe direto do outro pode atrapalhar a carreira de ambos", explica Waldson. O mais famoso casal que trabalha junto discorda: é possível, sim, um ser chefe do outro, afirma Fátima Bernardes, 46 anos, que há dez apresenta o Jornal Nacional com o marido, William Bonner, 44, seu superior na redação. "Na bancada não há hierarquia, e fora dela, como editora, defendo de maneira apaixonada aquilo em que aposto. Nem sempre prevalece a minha opinião, e isso faz parte", diz. Falam de trabalho fora do ar? "No começo, combinamos que não. A tentativa não durou uma semana. Era estranho não falar com ele, que sempre foi meu confidente", conta Fátima.
Edu Lopes |
"A gente sente falta de ter o que contar ao outro quando sai para jantar. Nossas conversas se limitam a trabalho e filhos. Só amando muito para passar 24 horas com uma pessoa a vida toda." Lais, que tem uma loja com o marido, José |
A bióloga Ana Paula Queiroz, 34, dona da Waterloo, uma consultoria ambiental de São Paulo, comanda 33 funcionários, entre eles o marido, Eduardo Azevedo, 36, diretor financeiro, e os dois consideram que separam bem as coisas. "Quando ela me cobra, não encaro como cobrança da minha mulher, e sim da gerente-geral", garante Azevedo. A necessidade de, pelo menos, aparentar isenção profissional já fez sofrer a cirurgiã plástica Ana Helena Patrus, 44. Nos três anos em que foi residente sob orientação do marido, Leonard Bannet, 59, "era difícil agüentar a bronca do chefe sem poder responder como esposa. E ele era muito mais rigoroso comigo do que com os outros residentes". Após vinte anos de casamento, há quinze sócios na Clínica Santé, conhecida pelas intervenções estéticas em artistas e outros famosos, eles acham que trabalhar junto, em vez de atrapalhar, ajuda. "Tive uma paciente que sofria de síndrome do pânico e, durante o pós-operatório, passou a semana ligando de madrugada. Que outro marido entenderia?", diz Ana. "Se tivesse outra profissão, ela se separaria de mim", concorda Bannet.
Inevitavelmente, marido e mulher, por mais que se esforcem, continuam sendo um casal no ambiente de trabalho. Tem o lado bom já citado: compreensão das exigências, diálogo constante. E tem o não tão bom: as discussões respingam livremente de um lado para o outro. "Se o Rodrigo está nervoso e um cliente reclama de um prato, é comigo que ele explode. Também, se não for comigo, vai ser com quem?", diz a compreensiva Ana Luiza Loyola, 34, que reparte com o marido, Rodrigo Ribeiro, 35, o cardápio do restaurante Gibraltar, na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. "Quando isso acontece, saio de perto e deixo para responder depois, porque o negócio está em primeiro lugar." Em seis anos de casamento, o casal teve uma briga séria que redundou em separação temporária. Nesse período, continuaram trabalhando juntos mais de dez horas por dia, num ambiente extenuante – o tipo de situação que preocupa as empresas. "Tentamos evitar que os casais trabalhem na mesma área para impedir fofocas e que algo no relacionamento atrapalhe o desempenho dos dois. Uma briga do casal pode afetar o clima de todo o setor", diz Marcelo Galano, 38, gerente de remuneração e benefícios da Ericsson do Brasil, empresa de 1 700 funcionários.
Edu Lopes |
"Quando a gente briga em casa, cada um chega à clínica, vai para o seu consultório e espera esfriar a cabeça. Como sempre temos de falar sobre pacientes, fica mais fácil fazer as pazes." Leonard, cirurgião plástico e sócio na Clínica Santé, de Ana Helena |
Em profissões de alto nível de exigência, dividir a mesma carreira, ainda que não o ambiente de trabalho, pode ser uma fonte de apoio mútuo para os cônjuges. "Como representantes da Justiça, não podemos sair para dançar ou tomar uma cerveja na cidade em que trabalhamos. Até para escolher os amigos precisamos ter cautela", relata a cearense Thalynni Lavor, 27, que assumiu em abril o cargo de juíza federal em Petrolina, Pernambuco, e vive a 400 quilômetros de distância do marido, Valécius Beserra, 33, que é juiz estadual em Glória, na Bahia. "Antes de se tornar juíza, a Thalynni me achava neurótico com os meus cuidados, mas agora me pede desculpas", diz ele. Os dois se encontram nos fins de semana, e cada um leva para casa pilhas de processos para análise. "Sempre que temos dúvidas ou angústias em relação a um caso, nós nos consultamos", conta Beserra. Às vezes, um precisa impor limite. "Já tive de dizer ‘O processo ou eu’. Felizmente, ela ficou comigo", brinca o juiz. As conversas monotemáticas têm seu lado estressante. Lais e José Poveda, ambos de 44 anos, admitem que a falta de outro assunto que não trabalho é a pior parte de estarem no mesmo negócio há doze anos, oito no cartório do pai dela e quatro na loja de utilidades domésticas do casal. "Às vezes, vejo um grupo de amigas num restaurante e fico com vontade de me sentar com elas para conversar sobre coisas diferentes", admite a empresária. Lais, se isso ajuda, acredite: mesmo quem não trabalha no mesmo local, nem tem idêntica profissão, às vezes morre de vontade de ouvir uma conversa diferente do papo de sempre da sua caríssima metade.
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