Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 06, 2008

A ascensão de Lang Lang

O MANDARIM DO PIANO

Um dos grandes talentos da música erudita atual, Lang Lang diz 
que a China passa por outra revolução cultural. Agora, "do bem"


Sérgio Martins

Adidas/Detlef Schneider
MEDALHA DE OURO
Lang Lang foi um dos grandes vencedores da Olimpíada de Pequim: tocou na abertura dos Jogos, como ícone da nova China

O pianista Lang Lang, de 26 anos, foi um dos grandes vencedores da Olimpíada de Pequim. Lang, claro, não participou das competições, mas firmou-se no papel de ícone da nova China. Na cerimônia de abertura, tocou num horrendo piano branco (sugestão do cineasta e diretor do espetáculo, Zhang Yimou, para quem a cor branca simbolizaria o futuro do país). Durante a festa de encerramento, atuou como comentarista para várias emissoras de TV do exterior. Lang destacou-se em meio a 1,3 bilhão de chineses tocando música erudita, um gênero que nos tempos de Mao Tsé-tung era tido como "decadente". Faz cerca de 120 concertos por ano a um cachê médio de 50 000 dólares (quantia que pode aumentar até cinco vezes, dependendo de quem o contrata). Mora em Nova York, tem uma coleção de carros de luxo e atua como garoto-propaganda de celulares, canetas e carros esporte. Ainda assim, é um orgulho da China comunista. "Estamos em meio a outra revolução cultural. Mas uma revolução cultural do bem", diz o pianista, em entrevista exclusiva a VEJA.

Nascido na cidade de Shenyang, Lang descobriu o piano aos 3 anos de idade, assistindo a um desenho de Tom e Jerry que tinha como trilha sonora a Rapsódia Húngara Nº 2, do compositor Franz Liszt. Dois anos mais tarde, ganhou seu primeiro concurso no instrumento. Seu pai, Lang Guoren, um ex-violinista que, durante a Revolução Cultural, foi forçado a trabalhar numa fábrica de peças para bicicleta, viu no filho a oportunidade para escapar de uma vida cinzenta. Os dois migraram para Pequim, onde viveram sob condições miseráveis. Moravam num cortiço infestado de ratos e sem rede de esgoto. Os exercícios diários de Lang ao piano eram o terror dos vizinhos. "Imagine um garoto tocar Beethoven e Schumann para pessoas acostumadas à música folclórica chinesa. Elas batiam na parede, faziam ameaças." Lang Guoren exercia sobre o filho uma pressão brutal. Quando o menino tinha 9 anos, seu pai suspeitou que ele havia cabulado uma sessão de estudos e deu a isso a dimensão de uma tragédia: "Tudo está acabado. Você é um preguiçoso, um mentiroso e não merece viver". Guoren deu ao filho um vidro de remédios e ordenou que ele engolisse trinta cápsulas. Depois, mandou que ele saltasse do alto do edifício. Lang, desesperado, esmurrou as paredes até que suas mãos começassem a sangrar. Foi quando seu pai caiu em si: "Eu não quero que você morra. Só quero que você pratique!".

AFP
APRIMORAMENTO
Lang com Barenboim: música além da técnica

Em 1997, Lang Lang mudou-se para os Estados Unidos, para aprimorar sua técnica. Dois anos depois, atendeu a um chamado de última hora para substituir o pianista André Watts num recital. Tocou o Concerto para Piano, de Tchaikovsky, ao lado da Sinfônica de Chicago. Desde então, tem se apresentado com as principais orquestras do mundo. O pianista passa a falsa impressão de que determinadas obras eruditas são fáceis de ser tocadas (no YouTube, existe um vídeo em que ele interpreta uma peça de Chopin deslizando uma laranja sobre as teclas do piano). Por outro lado, sofre do defeito que acomete jovens concertistas: muitas de suas interpretações são exercícios de técnica desprovidos de sensibilidade. Mas Lang Lang trabalha para corrigir essa limitação. Hoje, estuda com Daniel Barenboim, outro ex-menino prodígio que se tornou um instrumentista e um maestro de alto gabarito. "Daniel ajuda a focar minha atenção na música."

Outras mudanças de estilo chegam com a vivência. Nesta semana, as lojas da Europa e dos Estados Unidos recebem o disco em que Lang Lang interpreta os Concertos para Piano, do compositor polonês Frédéric Chopin. Escudado pela Filarmônica de Viena e pelo regente indiano Zubin Mehta, Lang relê uma obra que gravou pela primeira vez aos 13 anos de idade. "Na época, a única mulher em que podia pensar era minha mãe. Agora, sou capaz de compreender a sensualidade e o amor presentes na música de Chopin. Meu toque, meu fraseado e minha emoção denunciam isso." Com seu estilo flamboyant e cabelo espetado de roqueiro, Lang Lang diz que representa o povo chinês, mas não os seus governantes. De sua fala, contudo, transborda um nacionalismo exultante que certamente soa como música aos ouvidos dos dirigentes do Partido Comunista chinês. "Em vinte anos, a China será referência da música erudita mundial." Lang Lang já está na vanguarda dessa revolução.

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