Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, agosto 08, 2008

Pentimento -Maria Helena Rubinato

Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa -
BLOG NOBLAT
8.8.2008
| 8h05m


Essa linda expressão italiana, muito usada em artes plásticas, não me sai da cabeça desde que li os novos índices comprobatórios da ascensão social que todos comemoramos nesta semana. O artista, às vezes arrependido do que começara a pintar, aproveitava a tela e começava tudo de novo. O observador, a olhos nus, não via que houve uma mudança de idéia, mas a outra imagem, aquela da qual o pintor desistiu, lá ficava, prova do ‘pentimento’ do artista.

Creio que em artes plásticas o arrependimento cabe muito bem, mas em economia? Será que os novos índices resistirão ou passarão por outras pinceladas?

Vejamos a definição das classes sociais publicada em nossos jornais no dia 6 de agosto:

Pobre (classe E): renda familiar abaixo de R$768,00.

Remediado (D): de R$ 768,00 a R$1.064,00.

Classe média (C): de R$1.064,00 a R$4.591,00.

Elite (A e B): acima de R$4.591.

São índices por demais intrigantes. Não concordam?

Começo pelo caso do pipoqueiro da esquina. Depois de descontar o milho, o óleo, o sal, o gás, os saquinhos de papel, ele apura R$50,00 por dia. O ponto é numa esquina sem cinema, com bons colégios perto, e ele não trabalha nos fins de semana. Sua renda mensal: R$1.000,00. Sua mulher, diarista em dois prédios na mesma esquina, recebe, por 8 horas de trabalho, R$60,00. Ela também não trabalha sábados e domingos. Pelos 20 dias trabalhados, recebe R$1.200,00.

Renda familiar do Sr. e Sra. Pipoqueiro: R$2.200,00. Acabam de ser incluídos na classe média. Ficaram muito surpresos e contentes. Foram alegres para casa informar aos três filhos que, finalmente, chegaram lá. Deixaram de ser pobres e remediados, são da classe média, têm renda mensal per capita de R$440,00.

Passemos para outro caso. O da mocinha que desejava um chinelo Chanel, de plástico, parecido com uma havaiana, mas com design mais bonito. Cor de pêssego. Para conseguir seu objeto do desejo, a jovem enfrentou uma fila de um mês, e pagou R$1.200,00.

É evidente que fila de espera desses objetos muito desejados não é fila. Isso é modo de falar. Ninguém fica em pé, sob sol e chuva; é coisa fina, diferente. Mas não deixa de ser uma fila de espera e de exigir paciência do sonhador. Quilos de paciência e toneladas de dinheiro. Segundo o caderno ‘Ilustrada’ da Folha de São Paulo (domingo, 3 de agosto), há filas com lugares marcados até 2018 para aviões (a 60 milhões de dólares); para barcos (14 milhões de reais); para relógios (R$26.880,00); e, entre outros luxos, bolsas que valem milhares de reais, o sonho de consumo de 9 entre 10 senhoras, com filas gigantescas...

O lápis que vai comemorar os 240 anos de um gigante internacional do setor, lápis mesmo, com mina de grafite, mas todo paramentado, com três brilhantes no topo, é aguardado por colecionadores que pagarão por cada um 12 mil reais. Por esse preço, imagino que seja um lápis que já venha com talento e inspiração. É só encostar a ponta num papel e... milagre: sai um texto digno de Machado.

Não tenho nada contra quem tem dinheiro suficiente, e sobrando, para enfrentar essas benditas filas. São trabalhadores felizardos que conseguiram amealhar suas fortunas e podem fazer com elas o que bem entendem. Tudo, afinal, depende da cabeça de cada um.

O que estranho, e muito, é a frase de um pesquisador da FGV: “A queda na desigualdade é espetacular, com uma intensidade comparável á do crescimento da renda na década de 60” (Marcelo Néri, FSP, 6/8/08).

Prestaram atenção? “Queda na desigualdade”!

Tenho um receio. Noutro dia, um leitor e comentarista aqui do blog, Jaime Collier Coeli, citou diálogo travado entre o ministro Roberto Campos e um colega uruguaio, c. 1966. Campos perguntou se a política econômica uruguaia controlaria a inflação. Resposta do uruguaio: “No, señor. No controlamos la inflación. Hicimos cosa mejor, controlamos los índices”.

É esse meu receio. Que controlem os índices e que depois outros pesquisadores encontrem o ‘pentimento’ dos IPEAS e FGV da vida e apareçam outros quadros... Já pensou a decepção do Sr. e Sra. Pipoqueiro?

E tenho uma dúvida: como classificar os pacientes compradores das filas acima citadas? Sob qual letra do alfabeto eles se encontram?

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