Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 02, 2008

Os coletores da corte


Claudio Gama Pimentel e Arthur Allegretti Joly*


Estamos vivendo um período que se assemelha a um autêntico regime de exceção. Vemos, quase que diariamente, a lei e o direito sendo desrespeitados pela Polícia, por parte do Ministério Público e, o que mais preocupa, com o aval de alguns magistrados.

Além dos abusos óbvios praticados com desnecessária demonstração de força pela Polícia Judiciária - atos impensáveis em uma democracia onde deveria prevalecer absoluto o Estado de Direito -, deparamo-nos com mais um abuso, decorrente de questão já pacificada perante a mais alta instância do País.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu que, enquanto pendente o processo administrativo para a apuração de eventual dívida fiscal oriunda de tributos e contribuições sociais - inclusive acessórios -, é descabida tanto a ação penal quanto o inquérito policial. No âmbito estadual, a Lei Complementar nº 970/05 acrescentou dispositivos à Lei Complementar nº 939/03, impedindo que seja encaminhada ao Ministério Público representação para fins penais relativa a crimes contra a ordem tributária enquanto não proferida uma decisão final na esfera administrativa sobre a exigência do crédito tributário. Para completar a tendência de amenização da criminalização em questões contra o sistema financeiro e a ordem tributária, quando o contribuinte aceita a dívida apurada, na esfera federal a Lei nº 10.684/03 prevê que, a qualquer momento, uma vez pago integralmente o débito tributário ou oriundo de contribuições sociais - inclusive acessórias e as que estiverem em regime de parcelamento -, extingue-se a punibilidade dos crimes contra a ordem tributária, apropriação indébita previdenciária e sonegação de contribuição previdenciária.

Apesar da força normativa traduzida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, bem como a força dos dispositivos legais em plena vigência, a Polícia Judiciária e o Ministério Público vêm demonstrando força superior, pois, sem se importarem com o fato de a eventual dívida fiscal ou tributária estar em discussão na sede administrativa, com freqüência menosprezam o direito e, enquanto um inicia investigação criminal, o outro pugna pelo seu prosseguimento, o que, muitas vezes, vem sendo permitido pelo Judiciário.

Submeter empresários que discutem teses tributárias contrárias à ganância arrecadadora do Estado ao desconforto de prestar informações à Polícia sobre temas ainda não exauridos na esfera extrajudicial, sob o argumento falacioso de que o inquérito policial não constrange porque nada mais é que um procedimento igualmente administrativo, é inadmissível na medida em que, por definição, se trata de um processo preliminar ou preparatório da ação penal.

Tal procedimento tem o objetivo específico de apurar a materialidade e a autoria de delitos. Assim, por que instaurá-lo, com toda a sujeição que lhe é natural à pessoa do investigado, quando sequer a tipificação foi apontada em seara própria?

Numa só deliberação, desrespeita-se o princípio da utilidade e da necessidade dos atos públicos, assim como o dever de zelo pelo dinheiro público, visto que essas investigações têm altos custos.

É um desperdício com fato que só será penalmente relevante se a decisão administrativa apurar o débito, e se este deixar de ser recolhido.

Não se alegue que se trata de um ato contra a impunidade. A forma utilizada é inadequada. Em nome desta aparentemente louvável tentativa, estão a se valer da permissividade, do arbítrio e da truculência.

Partem sempre do princípio de que delitos fiscais foram inexoravelmente consumados. Invertem a ordem convocando desde logo o contribuinte e exigindo que lhes entreguem os vestígios que necessitam para dar suporte à investigação.

Certamente, não é essa a intenção desses organismos públicos. Mas, ainda que não seja intencional, a aparência é a de que se prestam a um papel menor que faz lembrar os vetustos coletores da corte, que "manu militare" coagiam o contribuinte ao recolhimento do tributo, pouco importando ser ele devido ou não.

De se ver o indisfarçável abuso que vem sendo praticado, justamente por quem tem o dever funcional de coibi-lo, corroborando com o que Montesquieu pensava: "Quem detém o poder se sente tentado a abusar dele." Acabar com esse arbítrio seria excelente para o fortalecimento da democracia e o Estado de Direito, ideal defendido pelo ilustre jurista e filósofo do Iluminismo.

*Claudio Gama Pimentel é advogado criminalista

*Arthur Allegretti Joly é advogado criminalista e juiz de direito aposentado

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