Ensaio da China
sinopse
Daniel Piza, E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
O Ocidente olha para este país gigantesco de 1,3 bilhão de habitantes, cujo PIB cresce à média de 10% ao ano, e naturalmente se assusta. Mas tem todo o direito de cobrar que a China cumpra suas promessas de evoluir nos direitos humanos - signatária que é, afinal, da Declaração Universal - e na liberdade de expressão. Não é possível negar que a repressão e a censura são brutais. Também o comportamento em relação a pautas separatistas como a do Tibete é marcado por imperialismo, por uma política que mal dá chance para o diálogo. Quem acha que o restante do mundo não deve interferir nesses assuntos está pronto para pensar assim, que estamos no "restante do mundo"...
Ao mesmo tempo, o medo se baseia também em ignorância e auto-interesse. Se você pensar na China de 40 ou 50 anos atrás, verá que ela evoluiu também no campo dos direitos individuais. Aos poucos deixa para trás as trevas do maoísmo, especialmente do período da Revolução Cultural, quando tantas barbaridades foram cometidas em nome do socialismo; Mao chegou ao ponto de mandar construir uma cidade subterrânea para 2 milhões de pessoas, claro que com trabalho semi-escravo de "voluntários" e estudantes. E pensar que intelectuais pseudomarxistas apoiaram tal servidão coletiva porque seria o suposto fim da "civilização burguesa"!
Nos anos 70, Deng Xiaoping começou a mudar isso, soltou um "enriquecei-vos" e a abertura começou. Desde então, nada menos que 400 milhões saíram da zona inferior à linha de pobreza. A economia de mercado vicejou e os frutos estão sendo vistos agora, nesta Pequim que olimpicamente exibe arquiteturas globalizadas e negocia com o mundo todo. Certo arcabouço institucional e legal foi criado para induzir esse desenvolvimento capitalista - e não há outra palavra, pois se trata de acumulação de capital na mão dos proprietários de meios de produção, entre eles o governo... Em todas as cidades há um desenvolvimento extraordinário, que é preciso ver com os próprios olhos para acreditar.
As transformações não são apenas materiais, embora tantos digam que a China "mudou mas não mudou". Se você tem dúvida, observe a nova geração, que não idolatra Mao mas idolatra Kobe Bryant, que tem acesso a quase tudo na internet e fala livremente em celulares e msn, que não é xenófoba e gosta da vida noturna. Quem pensa que isto aqui se fez por obra e graça do comunismo ou do velho e mau dirigismo está muito enganado. O governo, rico que é (até pelo que acumulou com a espoliação do trabalho em massa durante anos e anos), participa intensamente da atividade econômica; mas, sem abertura à globalização, nada igual teria acontecido.
No entanto, isso tudo não significa que a maioria dos chineses queira viver numa democracia ao estilo ocidental, com pluripartidarismo, eleições diretas, federalismo, etc. Como o governo chinês, eles acreditam que a China seja um novo modelo de desenvolvimento, um misto de capitalismo selvagem com controle estatal, de aceleração moderna com tradição ancestral. Até agora não encontrei nenhum chinês que não diga que a adoção da democracia seria ruim para a China, porque o tamanho e a diversidade da população e do país necessitam de um poder central forte, autoritário, dono de um Exército poderoso e de políticas como o controle da migração (pelo "hukou", permissão de residência) e o planejamento familiar (um filho por casal).
Essa noção de que a China só tem jeito se unificada de cima para baixo - que está na mitologia de sua fundação histórica, na dinastia Han, como encenado brilhantemente no filme Herói, de Zhang Yimou, não por acaso o diretor da cerimônia de abertura - se tornou um dogma não apenas entre os chineses, mas também entre muitos estrangeiros. É uma certeza fatal de que sem o monolito do Partido Comunista, como do imperador antes dele, a "nação do meio" se esfacelaria rapidamente. Quem sabe?
A China, claro, nunca teve seu Voltaire; não dá o mesmo valor do Ocidente à separação entre público e privado e ao conceito de defender até a morte o direito de discordar. (A América Latina também não dá o valor devido, como Octavio Paz se cansou de dizer; mas suas culturas têm boa porção de herança européia.) Quando pergunto aos chineses por que então a Índia, que é ainda mais diversificada em termos de idiomas e religiões, é uma democracia e também cresce a passos largos, eles não sabem o que dizer. Sim, a Índia tem o sistema de castas, que é uma forma de controle das tensões sociais. Mas também a sociedade chinesa não tem inclinação para as crises que as ocidentais têm.
Essa coesão social chinesa tem a ver com os fundamentos de sua civilização, em especial com Confúcio - e esse é o motivo por que ele está cada vez mais em alta no país, onde sempre foi estudado nas escolas e agora é tema de muitos livros, teses, filmes, etc. Depois do fim do período comunista, em que esse híbrido de santo e pensador foi posto de canto por sua exaltação da "cerimônia e propriedade", tal ressurgimento era mais do que previsível. Os chineses encontram nessa seção de suas idéias - mais do que nas outras, bem autoritárias e machistas - um respaldo para a atual onda de enriquecimento e nacionalismo. Filha de Sócrates, Platão e Aristóteles, a sociedade euro-americana pertence a outra linhagem.
O curioso é como as perspectivas agora se inverteram. Num dos artigos que li no China Daily, o jornal local em língua inglesa (de propriedade estatal como toda a mídia impressa e audiovisual), um editorialista chinês se queixava da dificuldade dos ocidentais de entender o progresso. O progresso? Isso mesmo. Para ele, a imprensa estrangeira pôs tanta ênfase em problemas ambientais e sociais porque a cultura ocidental se angustia com o progresso, com o desenvolvimento industrial e urbano. É um ponto de vista. Afinal, Europa Ocidental e EUA consumiram muito petróleo e derrubaram muita floresta até chegar aonde estão; e agora, com consciência culpada, vêm cobrar de países emergentes que não os imitem.
Não é fácil explicar que a China pode reduzir a pobreza sem fazer o mesmo caminho, até porque seriam necessários seis planetas para isso - e ninguém pediu a ela que colocasse tanta gente na superfície terrestre. Também não é fácil explicar que a China pode reduzir a pobreza aderindo à democracia, ou pelo menos com um sistema político que implique cidadania, direitos trabalhistas, concorrência justa, etc. Mas não há como desdenhar do que ela vem conseguindo fazer, inclusive com investimento pesado em educação e tecnologia. Em Pequim me senti muito mais próximo de Tóquio ou Seul do que de Mumbai ou Moscou.
Na atualidade, a China olha para dois contextos. Primeiro, como o conflito na Geórgia demonstra, há o temor de viver o que viveu a ex-URSS, dividida em repúblicas de fronteiras nem sempre razoáveis e ainda sob a égide das arbitrariedades de Moscou. Segundo, menos citado, ela sentia um complexo de inferioridade diante do crescimento dos "tigres" do sudeste asiático, que deram saltos de desenvolvimento mas sofreram tropeços financeiros graves no final do século 20. A ambição chinesa, esse grande experimento ou ensaio que acredita poder controlar, confiante em sua cultura da disciplina, é entrar no Primeiro Mundo livre de tais traumas. Até por esse ritmo "milenar", talvez não saibamos em vida se ela conseguiu.
RODAPÉ
Me perguntam de livros sobre a China. Andei lendo muita coisa e comprei mais algumas aqui, mas trouxe comigo um livro que já tinha lido, Em Busca da China Moderna, de Jonathan Spence, seguramente o clássico do assunto, por mostrar como o país precisou se reinventar para manter a unidade em tempos modernos, com os desafios da diversidade e o papel do confucionismo. Antes de vir li ainda uma competente história de Pequim, Beijing - From Imperial Capital to Olimpic City, de três autores, e Caminhos da China, de John Pomfret, bom para entender como a China realmente mudou (e ainda tem a mudar) dos anos 80 para cá.
Por causa de um elogio do próprio Spence, já aqui comprei Mao?s Last Revolution, de Roderick MacFarquhar e Michael Shoenhals, que fazem uma narrativa extraordinária (até onde estou) da barbárie maoísta na Revolução Cultural, que complementa a biografia de Mao por Chang Jung e Jon Halliday. Na mesma livraria, Bookworm (uma das que vendem livros em língua inglesa em Pequim, inclusive de livros anti-regime como os de Xinran), por indicação da dona, comprei China Shakes the World, de James Kynge, coletânea de artigos que tratam de problemas como a pirataria e trunfos como a irrigação. Outros livros que comprei, sobre Confúcio, arquitetura e outros temas, comento outro dia.
POR QUE NÃO ME UFANO
Me diverti ao ler na internet que agora alguns economistas acham que o Brasil depende demais das commodities, compradas por países como a China. Não foi por falta de aviso. Nossas exportações são 60% concentradas em commodities, e o salto da balança comercial era claramente reforçado pelo aumento dos preços. O Brasil ainda não entrou de vez no comércio internacional, o que exige ter na pauta também produtos manufaturados, com densidade tecnológica, em que investiu o capital do conhecimento, como nos aviões da Embraer. Num lugar onde mal existe uma cultura de patentes, ainda falta muito.
''Resumi em cinco ?Ps? os problemas do país: poluição, polícia, pobreza, pirataria
e pimenta''
''Híbrido de santo e pensador, Confúcio está cada vez mais em alta e é tema de livros, teses, filmes, etc.''
Aforismos sem juízo
Soberba, s.f. - Essa mania de debochar da autocomiseração nacional.