Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, agosto 17, 2008
Augusto Nunes-SETE DIAS
Contra pobreza, tome pesquisa
O paulistano João Rogério da Silva Alves, 36 anos, 15 dos quais casado com Maria Cavalcanti, é motorista de táxi há 13. Mora com a mulher e duas filhas (14 e 9 anos) no bairro de Cachoeira, um amontoado de construções tristonhas que parecem mais velhas do que são e sempre à espera do acabamento, dos atavios e dos móveis que não virão. O serviço de água funciona razoavelmente, a rua é asfaltada, mas a rede de saneamento básico ainda não chegou lá. Como os vizinhos, os Alves se livram dos detritos do dia no leito de um córrego que depois os despeja no Rio Tietê. A casa, alugada por R$ 300 mensais, tem dois cômodos de 12 m². O reservado à cozinha freqüentemente acabou acumulando as funções de sala de visitas, sala de jantar e copa. O outro é o quarto, dividido ao meio por um lençol ali pendurado para sugerir a inexistente privacidade. Nesse espaço estão a cama do casal e a das filhas, separadas por centímetros, além da TV comprada em janeiro de 2006 por R$ 800, fatiados em 12 prestações. "De lá para cá não tive dinheiro para mais nada", diz Alves. Nem para o carro próprio, que o dispensaria da porcentagem cobrada pelo patrão.
Há 13 anos a serviço do dono de uma frota de táxis, acorda sempre às 5h, busca o veículo na garagem da empresa e estaciona antes das 6h no ponto localizado na região dos Jardins. Nas 16 horas seguintes, estará ou à espera de algum passageiro, ou circulando pelos labirintos da metrópole, ou testando a paciência em ruas congestionadas. Dorme perto de meia-noite. Folga aos domingos se juntou o suficiente durante a semana. Não tira férias há mais de 10 anos. "Com o que ganho, não dá para ter luxos, mas não devo nada a ninguém", diz. "Vivo uma vida de pobre". Ganha por mês cerca de R$ 1.800, que se somam aos R$ 400 que a mulher consegue como diarista. A renda familiar ultrapassa amplamente a fronteira, redefinida em 6 de agosto pela Fundação Getúlio Vargas, que separa a pobreza da classe média. "Você chegou aos R$ 1064", deveria prevenir alguma placa. Por falta de aviso, Alves só soube na quinta-feira que subira na vida sem mudar de vida. Continuava pobre, mas na classe média. "Como é que posso ser da classe média se não tenho como fazer o que faz a classe média?", intrigou-se. Perguntei-lhe o que acha que faz a turma da divisão a que foi promovido. A classe média vai ao cinema ou ao teatro uma vez por semana, exemplificou. "E sai para comer num restaurante melhorzinho". Alves não vai ao cinema há 15 anos e nunca foi ao teatro. "Vontade eu tenho, o que não tenho é dinheiro", desculpou-se. Mas de vez em quando vai com a família a uma churrascaria, ressalva. Foi pela última vez faz três anos. Ele por acaso notou que a pobreza está diminuindo, e em alta velocidade, como garante a pesquisa? "Só se os pobres dos bairros que esses caras pesquisaram mudaram todos para o meu", acha graça. Aponta um punhado de deficientes físicos e mulheres em andrajos com crianças de colo e emenda: "É assim em qualquer esquina". No fim da corrida, ele resolve conferir a promoção: "Se entrei na classe média, vou usar o elevador social", sorri. "Até hoje só pude usar o elevador de serviço". O país recriado pelos malabaristas da estatística é uma beleza. Pena que não se consiga enxergá-lo a olho nu.
Mistério olímpico
O que foi fazer Orlando Silva nos Jogos Olímpicos? Provar que o ministro dos Esportes não é o falecido cantor, mas um homônimo muito vivo filiado ao PCdoB? Confirmar que, a cada quatro anos, o País do Futebol descobre que há outros esportes para esquecer tudo três semanas depois? Exigir medalhas de atletas que estão em Pequim apesar do Brasil, e devem tanto ao país quanto ao reino da Dinamarca? Aprender com quem sabe o que quer dizer "política esportiva"? Ou só conferir, usando o cartão corporativo, o sabor de alguma versão chinesa da tapioca?
O indigente e a ararinha azul
Os alquimistas do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas não fariam feio se disputassem com os curandeiros da Fundação Getúlio Vargas a final do campeonato brasileiro de levantamento de pobre. Só anda faltando à direção do time mais esperteza marqueteira. Foi um erro, por exemplo, divulgar o levantamento do Ipea, também circunscrito às seis maiores metrópoles do país, junto com estudo da FGV intitulado A nova
classe média.
Ao transplantar um pedaço da pobreza para o or- ganismo debilitado da classe média, a FGV mandou um petardo no ângulo que acabou ofuscando os dribles e passes de trivela dos craques do Ipea. Um dos lances mais vistosos resultou na expulsão de milhões de brasileiros do campo da pobreza, restrito a famílias com renda mensal abaixo de R$ 207. De 2003 a 2008, segundo o Ipea, o índice baixou de 35% para 21,1%. Eram 14.352.753 no primeiro dia da Era Lula. Cinco anos depois, 4 milhões saíram do atoleiro. Os efeitos da pesquisa foram ainda mais agudos entre os miseráveis, rebatizados como "indigentes": os que sobrevivem com menos de R$ 103,75 caíram de 13,7% para 6,6%. Indigente agora virou uma espécie em extinção. Em 2010, será mais fácil enxergar uma ararinha azul que um genuíno miserabilis brasilis.
A cassação é só um um bom começo
Se algum gaiato agachado nas galerias da Assembléia Legislativa do Rio soltasse o berro medonho "Olha o rapa!" não dariam quorum para o prosseguimento da sessão os deputados que resistissem à tentação de sair em desabalada carreira. A cassação do mandato de Álvaro Lins, portanto, é um bom sinal: valendo-se do voto secreto, muitos integrantes da amplamente majoritária bancada dos prontuários acharam prudente endossar o castigo. Menos mal. Um bom sinal que pode tornar-se um bom começo se o Ministério Público e o Judiciário impedirem que a história se esgote no prólogo. Um bandido que se disfarçou de xerife
para fazer o que fez Álvaro Lins na chefia da polícia do Rio merece muito mais que a cassação. O bloco dos especialistas em pilantragens jurídicas já evolui nos tribunais. Os distribuidores de habeas corpus e liminares devem ser menos misericordiosos com vilões juramentados. E que os homens da lei não se esqueçam dos outros, sobretudo dos chefões da quadrilha. Durante seis anos, o xerife-bandido entrou sem bater no gabinete do governador e da governadora. Anthony Garotinho não vai escapar dessa enrascada com uma greve de fome de araque. Até precisa perder alguns quilos, mas antes disso haverá de perder de vez a fé na eterna impunidade.
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