Entrevista:O Estado inteligente

domingo, julho 10, 2011

DANUZA LEÃO Queima de arquivo




Não existe nada melhor do que uma agenda novinha em folha, com todas as páginas em branco


OUTRO DIA ME programei para passar a limpo a agenda de telefones, coisa que não fazia havia cinco anos. Eu talvez seja a última pessoa a ter uma agenda de papel, mas como sou romântica e sentimental, é assim, e pronto. Não existe nada melhor do que uma agenda novinha em folha, com todas as páginas em branco. É quase igual a recomeçar a vida, com muitas delícias e algum tormento.
No dia marcado, comecei a saber dos últimos escândalos pelos jornais, e quando li sobre o inacreditável código de ética do nosso inacreditável governador Sérgio Cabral, achei que tinha mais o que fazer; toda animada, comecei pela letra A, achando que ia ser tudo uma delícia, e no princípio até foi. Mas percebi que a cada nome era preciso fazer uma opção e reavaliar as relações para saber se valia a pena tê-las na agenda nova. Algumas eu tinha certeza que sim, outras que não, e algumas, francamente não sabia.
Aquela amiga com quem abri meu coração tantas vezes, com quem ficava horas no telefone falando do passado e fazendo planos para o futuro; com ela desabafei, ri e chorei, juntas compartilhamos alegrias e tristezas. Gostava dela de verdade, mas na verdade, entre nós só havia em comum o fato de sermos solteiras, nos encontrarmos todos os dias na ginástica e, frequentemente, à noite, para a balada, o que não chega a ser muito. Um dia ela mudou para outro bairro, se casou, teve um filho, e os telefonemas, claro, foram rareando. Se nos cruzarmos hoje em algum lugar vai ser um prazer -será mesmo?- mas sinceramente: vou ligar para ela algum dia na vida? Finjo que estou na dúvida, mas já sei que não.
Responder a essa pergunta é um exercício de autoconhecimento. Será que eu não tenho sentimentos e de tudo o que passamos juntas não sobrou nada? Sobrou uma amizade, sim, só que ela agora faz parte do passado, e as lembranças -poucas- vão ficar só no coração, não na agenda. Aliás, eu nunca liguei para ela, mas nem ela para mim.
A cada nome vinham coisas na cabeça, e na letra L já tinha passado metade da minha vida a limpo. De algumas, lembrei com prazer -e doeu, por já terem passado- e de outras, preferia ter esquecido. Aquela empregada que trabalhou para mim durante anos e que foi testemunha de todas as coisas -as boas e as péssimas- e para quem nunca mais telefonei. E o remorso? Vou ligar, adoro ela, mas já sei que vou sofrer.
Mas tem outras: houve um homem por quem um dia inventei sei lá o quê, e como essas invenções têm prazo de validade curto, logo chegou a hora de desinventar. Um dia, num aeroporto, achei que era ele e enfiei a cara no jornal para não ter que falar. Podia pintar tomar um café, com direito a perguntas sobre como vai a vida, só que a última coisa no mundo de que eu queria saber era da vida dele, e ele, provavelmente, da minha. E se nosso avião fosse o mesmo? E conversar, durante a viagem? Essa foi até fácil: ele não foi para a agenda nova.
E os que estão na agenda, mas que você não vê há 20 anos, como estarão? A memória protege e nos faz lembrar da pessoa como da última vez em que a vimos, mas a vida deixa marcas no rosto e na alma. Quando você vê essas marcas no outro, sofre e pensa que está sofrendo por ele, mas na verdade está sofrendo por você mesma. Afinal, os 20 anos não passaram só para ele.
Refazer uma agenda é uma queima de arquivo, e ninguém passa por isso impunemente; a vida é cruel, e em alguns casos, a única defesa é endurecer, e sem nenhuma ternura.

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