Há um enorme canhão armado pelo governo federal. Tem entre seus alvos as suas próprias finanças e o bolso do contribuinte. A munição tem grosso calibre, de 45 ou mais bilhões de reais, vários a título de subsídios, e é um projétil na forma de trem. A última tentativa de dispará-lo foi no dia 11, quando um leilão de outorga não teve interessados. Felizmente, mas a artilharia governamental já anunciou que vai insistir. Com seus fragmentos, a bala danificaria também a alocação eficiente dos recursos públicos e a equidade social.
Fora do círculo governamental e dos interessados e interesseiros em torno dele, predominam opiniões em contrário. Nos últimos dias, duas interessantes matérias neste jornal trouxeram opiniões de fora do País.
Uma no dia 4, a de Zhao Jian, professor da Universidade de Transportes da China. Eu não sabia da existência de uma universidade desse tipo e seria ótimo se antes de imitar trens-bala - para não variar, o Brasil não tem tecnologia para pôr um deles na linha - copiássemos essa instituição de ensino superior chinesa para termos melhores projetos de transportes. Temos um Ministério do assunto, mas, a julgar pelo noticiário recente sobre ele, é muito focado em desvios.
Esse professor mostrou que, em seu país, arma semelhante já fez vários disparos. O resultado será "uma crise de dívida", um rombo de US$ 309 bilhões que deve chegar a US$ 618 bilhões em quatro anos, já que "não há muitos trens e passageiros nessas linhas". Trata-se de um importante aspecto da questão, pois é preciso uma grande densidade populacional e econômica para que a vantagem da rapidez de um trem-bala compense seus enormes custos. Como outros, ele aponta a linha Tóquio-Osaka, no Japão, como bem-sucedida. Ela opera na distância de 500 km, em que os trens-bala podem ser competitivos relativamente ao avião, e numa região que concentra 60% da população do país, e ao longo de sua linha estão 64% do PIB nacional. Isso gera uma demanda que permite 160(!) composições por dia, que transportam cerca de 150 milhões de passageiros por ano, o que dá perto de 420 mil por dia. Na China, a linha Zhengzou-Xian também é de 500 km, mas a população tem renda baixa e a densidade demográfica da região não é tão alta como no Japão. Resultado: rodam apenas 11 composições por dia e o preju é elevado.
Ressaltou também Zhao Jian que em distâncias como essa - próxima da do projeto Campinas-São Paulo-Rio de Janeiro - os trens-bala são inadequados no período noturno. De fato, quem saísse de São Paulo à meia-noite chegaria ao Rio perto das 2 da manhã. Para fazer o quê? Aliás, não vi nada sobre como será enfrentada a concorrência dos ônibus interurbanos, que no Brasil funcionam relativamente bem - quase não se veem reclamações - e em larga medida superam essa dificuldade, pois no mesmo exemplo estariam no Rio perto das 5 da manhã.
A outra entrevista veio no dia 17, do professor Richard White, da Universidade Stanford (EUA), autor de livro sobre as ferrovias transcontinentais do seu país (Railroaded, W. W. Norton & Co., 2011). Também tratou das densidades populacional e econômica e adicionou que a viabilidade precisa ser assegurada pela conexão do trem com eficiente rede de metrôs, ônibus e trens de outros tipos. Mesmo uma linha entre São Francisco e Los Angeles, duas cidades grandes e muito ricas, exigiria grandes subsídios, pois a segunda é deficiente quanto a essa rede.
Richard White tocou também na questão social, afirmando que o subsídio a um trem-bala seria justificável se a população ligada ao projeto fosse seguramente beneficiada com menores congestionamentos e ganhos ambientais relativamente a outros meios de transporte, entre outros aspectos. Mas, olhando o Brasil, quem se beneficiaria dos subsídios governamentais a esse trem-bala? Seguramente, o público a ser atendido por ele não seria o maior nem o mais credenciado por critérios como esses.
Numa destinação alternativa, muito mais eficiente do ponto de vista de benefícios econômicos e sociais, mais credenciadas são as populações mais pobres das grandes cidades. São milhões que em condições danosas à saúde se espremem em ônibus, a respirar fumaça nas paradas e no trajeto, ao mesmo tempo que perdem um tempo enorme, que seria mais bem alocado a atividades em benefício próprio, como a educação.
Assim, os metrôs seriam uma aplicação muito mais adequada dos recursos do trem-bala, que permitiram construir uns 200 km de linhas dessa natureza. Mas fazer isso cabe aos Estados, que não têm dinheiro para tanto. Enquanto isso, o governo federal os tem em abundância, a ponto de esbanjá-los em subsídios desse e de outros tipos, vários deles à revelia de seu bom uso, inclusive na sua outorga aos menos necessitados.
Apesar da evidente vulnerabilidade do projeto, o governo seguirá insistindo nele. Conforme o diretor-geral da agência governamental (ir)responsável pela iniciativa, "a União é fiadora dessa equação e vai assumir o risco". Com essa disposição, e fragmentado o projeto para atrair empresas em etapas de sua especialidade, em algum momento haverá leilões bem-sucedidos para o governo, mas desastrosos para quem vai pagar a conta, como o leitor e seus descendentes. E ela não virá apenas de impostos e/ou dívida pública ampliada, mas também da oportunidade perdida de usar melhor os recursos.
Neste mundo globalizado, onde a competitividade é o nome do jogo, o que o Brasil vai ganhar com esse e outros projetos megalomaníacos, ineficientes no seu uso de recursos e socialmente iníquos, como a Copa e a Olimpíada, enquanto permanece carente em áreas como educação, saneamento e infraestrutura em geral? Nesse jogo da competitividade, com seu voluntarismo de más consequências, o governo federal quer agora estender aos trilhos sua prática de confundir competição com exibição.
Entrevista:O Estado inteligente
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