O Estado de S.Paulo - 31/07/11
O momento vivido pelos EUA, um dos mais tensos de sua contemporaneidade política, é fértil em simbolismos, não apenas pela possibilidade de a maior democracia do planeta vir a dar um calote nos credores externos (coisa ainda inimaginável), mas porque põe no centro do debate a missão dos atores políticos no seio das democracias modernas. Impressiona o fato de os Partidos Republicano e Democrata, deixando de lado o papel desempenhado pelo país na textura das nações, parecerem inclinados a continuar uma luta esganiçada pelo poder e a depositar na cesta do lixo a célebre lição de John Kennedy: "Não pergunte o que a América pode fazer por você, mas o que você pode fazer pela América". Mesmo que se chegue a um acordo sobre o limite da dívida do governo federal (aumento além de US$ 14,3 trilhões), a crise aponta para o ocaso de uma era, na qual a representação política, ante a ameaça de catástrofe, esquecia divergências partidárias e se dava as mãos pela salvaguarda do bem comum. Os partidos já não acendem aquela chama de civismo que tanto maravilhou Alexis de Tocqueville, há 180 anos, quando o jovem advogado de 26 anos foi enviado pela França para estudar o sistema penitenciário estadunidense.
Descrevia ele, na obra A Democracia na América: "Os grandes partidos são instrumentos que se ligam mais a princípios que a suas consequências, às generalidades que aos casos particulares, às ideias e não aos homens". A queda de braço entre as duas estruturas que se revezam no poder e o duelo verbal entre o presidente Barack Obama e o presidente da Câmara, John Boehner, mostram que a balança dos pesos e contrapesos está quebrada. A política refunda-se sob a égide do salve-se quem puder. O altruísmo, valor tão enaltecido pela democracia norte-americana, cede lugar ao pragmatismo; o fervor social esfria, basta ver a avaliação negativa que a população confere ao presidente Obama, aos dois partidos e aos líderes. Sob essa teia de tensões, os EUA ingressam na segunda década do século 21 com a imagem de liderança no painel das democracias planetárias em franco processo de declínio. Quais as razões para tal mudança de paradigma? A principal causa aponta para a alteração da fisionomia política na sociedade pós-industrial. A política deixa de ser missão para se tornar profissão, desvio que ocorre na esteira do desvanecimento das ideologias. Ademais, o motor econômico, principalmente na moldura da globalização, passou a movimentar a máquina política, como se aduz dos atuais embates que se travam nos EUA e na Europa. Ideários e escopos doutrinários perdem substância. Tornam-se apêndices da economia. É esta que torna viável a eficácia de governos.
Dito isto, cabe indagar: como essa "nuvem de disfunção" (é assim que alguns analistas veem a crise norte-americana) afeta países como o Brasil? Ora, o fio desse rolo já chegou até nós há muito tempo. Ou o Brasil não tem nada que ver com a prática da intransigência, do impasse político e da polarização entre situação e oposição? A lupa sobre nosso modelo mostra que, por aqui, a política não dá trégua aos competidores. A gana pelo poder é tão desmesurada que os climas eleitorais se intercambiam. O panorama da eleição seguinte é divisado tão logo a paisagem anterior acomoda os eleitos em seus cargos. Não há interstício entre uma urna e outra. Quem não enxerga, por exemplo, que o teatro do pleito de 2012 já está montado? Ou que o palanque das eleições gerais de 2014 já passou a ser usado por um matreiro cabo eleitoral disposto a energizar o País? A presidente Dilma nem bem completa sete meses e uma lista de pré-candidatos já está pronta para disputar o seu lugar. Nos espaços governativos de todas as instâncias, programas e projetos, mesmo os mais abrangentes, comportam ações de cunho eleitoreiro. Políticas de longo prazo, nem pensar. O Brasil é o território do "aqui e agora", fato que motiva o megaempresário Jorge Gerdau a fazer o alerta sobre, por exemplo, nossa política cambial: "Se é só pela visão financeira, do fluxo de capital, nós poderíamos deixar como está, porque a situação é cômoda a curto prazo. Mas, numa visão estratégica de longo prazo, é preciso ter políticas de desenvolvimento industrial, ter emprego de qualidade e não depender apenas de commodities e do minério".
A ausência de estratégia de longo prazo deriva da efervescência eleitoral que impregna o ânimo dos conjuntos. Como nos EUA, por aqui não se abre espaço para a busca de consenso entre blocos de um lado e de outro a respeito de temáticas relevantes. A disputa obedece a uma lógica que Thomas Hobbes cunhou de política de golpes preventivos: A teme que B ataque e decide atacar primeiro, mas B, temendo isso, quer se antecipar, fazendo que A, pressentindo o golpe, tente reagir, e assim por diante. O ataque não abriga armas de destruição ideológica (até porque as ideologias estão no fundo do baú), mas movimentos táticos. Como se sabe, as clivagens partidárias do passado, originadas em antagonismos de classes, perdem sentido no fluxo da expansão econômica e do consequente ingresso de parcelas das margens sociais no centro da pirâmide. Todas as siglas se assemelham e seus lemas, antes ancorados em escopos de cunho ideológico, agora ganham um uníssono eco: o poder pelo poder. O vezo socializante com que certas organizações tentam selar suas identidades não se deve a uma convicção ideológica, mas às bolsas e aos pacotes destinados a colocar o pão na mesa das massas carentes.
Nem mesmo nosso sistema de coalizão partidária resiste à "política de emboscadas" que as entidades procuram engendrar para ganhar mais fatias de poder. Cada uma parece cobiçar o espaço da outra. A polis é um detalhe. As alianças, formadas ao sabor das circunstâncias eleitorais, não são firmadas sob a crença em ideários cívicos. O que há é um jogo de conveniências. O contrato de hoje pode se desfazer amanhã. A cada dia, a seiva política escorre pelo ralo.
Entrevista:O Estado inteligente
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