William Jennings Bryan perdeu duas eleições presidenciais americanas, mas passou à História por um discurso pronunciado em 1896 perante a convenção do Partido Democrata. Em nome dos agricultores endividados, ele classificou o padrão ouro como uma ferramenta dos interesses de "ociosos detentores de capital ocioso". Se, na sequência do crash de 1929, os bancos centrais das potências tivessem ouvido seu alerta sobre o risco de "crucificar a humanidade numa cruz de ouro", teriam provavelmente evitado a Grande Depressão. Hoje, tanto tempo depois, Jean-Claude Trichet continua imune às lições daquela catástrofe: sob seu comando, o Banco Central Europeu (BCE) parece decidido a crucificar a Europa na cruz do euro.
"Nós não obtivemos absolutamente nada, exceto que coletamos dinheiro de um monte de pobres diabos e o espalhamos aos quatro ventos", explicou Montagu Norman, presidente do Banco da Inglaterra, num franco, porém tardio, reconhecimento da culpa dos bancos centrais que empurraram o mundo para a Depressão. O BCE faz exatamente o mesmo com seus planos de austeridade para os países endividados da periferia da zona do euro. Segundo o preceito que os orienta, os devedores pagarão o valor de face de todos os títulos emitidos. Na ausência do recurso à desvalorização da moeda, o dinheiro não emanará de uma recuperação econômica, mas exclusivamente de cortes de gastos públicos, salários e aposentadorias. O programa fundamentalista fracassará no terreno da política antes ainda de naufragar na esfera da economia.
A Grécia reproduz uma desastrosa trajetória deflacionária experimentada pela Grã-Bretanha após a restauração do padrão-ouro, em 1925, e pela Argentina presa à cruz do dólar nos anos 1990. Um ano depois do primeiro pacote de empréstimos a retração da economia amplia o estoque de uma dívida que, todos sabem, não será paga. A única saída para a Grécia é a retomada do crescimento no futuro próximo, mas a curiosa solução imposta pelo BCE consiste em aumentar a dose do tóxico remédio recessivo. Irlanda e Portugal percorrem etapas distintas da mesma estrada de destruição irracional de riquezas, que já se abre como um destino implacável à Espanha e à Itália.
Na hora da reunificação alemã, o primeiro-ministro Helmut Kohl passou por cima da independência formal do Bundesbank e decidiu que a moeda da antiga RDA seria trocada por marcos ocidentais segundo uma paridade de equivalência. A independência do BCE não ultrapassa os limites dos interesses vitais das nações europeias. Contudo, na falta de consenso entre os estadistas da Alemanha e da França, Trichet transfigurou-se numa espécie de czar da Europa. Sua versão da Santa Aliança é uma coalizão profana do BCE com os bancos alemães e franceses detentores dos títulos das dívidas europeias.
A América Latina tem algo a ensinar à Europa. Três décadas atrás, sob o impacto da crise das dívidas externas, os países latino-americanos patinaram na lama da estagnação enquanto o Plano Baker, de 1985, desviava recursos sociais para o caixa dos bancos credores. A recuperação só começou com o Plano Brady, de 1989, que criou um mercado de renegociação do valor dos títulos da dívida. Hoje, o czar Trichet rejeita por princípio a alternativa lógica de reestruturação das dívidas europeias, recusando-se a admitir que um empréstimo irresponsável deriva das irresponsabilidades combinadas do tomador e do emprestador. Sua opção por Baker, em detrimento de Brady, equivale à celebração de um fracasso conhecido.
Na periferia da zona do euro, ao contrário do que aconteceu na América Latina do passado recente, rigorosos planos de austeridade são aplicados em plena vigência das liberdades públicas, pondo em risco a estabilidade dos sistemas políticos nacionais. A derrota do partido governista nas eleições gerais portuguesas de junho reiterou uma norma verificada antes na Irlanda e na Grécia, bem como nas eleições regionais espanholas e italianas. Em Portugal, como nos demais países em crise, o partido oposicionista triunfante declarou sua adesão integral ao programa de empobrecimento firmado com a União Europeia (UE) e o FMI. O voto não tem valor, pois tudo o que importa foi decidido de antemão - eis a mensagem enviada por derrotados e vitoriosos aos cidadãos. De fato, no lugar dos partidos nacionais, emerge algo como um Partido do Euro, dirigido do exterior pelo BCE de Trichet.
O projeto do euro surgiu como resposta criativa ao dilema político posto pela reunificação alemã. A Europa não constituía uma zona monetária ideal, mas o euro devia existir para subordinar a Alemanha ao imperativo da unidade europeia. O czar Trichet parece alheio a essa história quando prescreve uma fórmula econômica que exclui do cálculo estratégico a razão política. A alemã Angela Merkel e o francês Nicolas Sarkozy, fiadores tácitos do presidente do BCE, fazem travessuras numa sala de cristais ao permitirem que o destino da UE oscile ao sabor dos dogmas anacrônicos de um banqueiro central.
Planos de austeridade radicais só combinam com a democracia em tempos de guerra. Na América Latina da crise das dívidas, eles foram montados à sombra das ditaduras militares - e seus devastadores efeitos sociais aceleraram o colapso dos regimes autoritários. Na Europa da crise do euro, a erosão da confiança nos sistemas políticos nacionais assume, ao menos provisoriamente, a forma de uma rebelião fragmentária, sem lideranças ou plataformas de ação comum, que se expressa em greves, protestos de rua e também no crescimento eleitoral de ultranacionalistas e neocomunistas.
Na hora da introdução do euro, em 1999, o historiador Niall Ferguson deu apenas uma década de vida à moeda europeia. Angela Merkel e Sarkozy parecem empenhados em fazer a mórbida profecia se cumprir. Fio a fio, eles desmancham o frágil trançado da União Europeia.
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2011
(2527)
-
▼
julho
(245)
- DILMA: OS ENORMES RISCOS DA ESTRATÉGIA DE IMAGEM! ...
- O poder pelo poder GAUDÊNCIO TORQUATO
- A nova era na roda do chope JOÃO UBALDO RIBEIRO
- Teatro do absurdo MÍRIAM LEITÃO
- Foco errado CELSO MING
- As marcas do atraso JANIO DE FREITAS
- Uns craseiam, outros ganham fama FERREIRA GULLAR
- Chapa quente DORA KRAMER
- Corrupção - cortar o mal pela raiz SUELY CALDAS
- Liberdade, oh, liberdade DANUZA LEÃO
- Como Dilma está dirigindo? VINICIUS TORRES FREIRE
- Prévias? Não no meu partido MARCO ANTONIO VILLA
- Dilma se mostra Merval Pereira
- A reforma tributaria possível. Ives Gandra da Sil...
- Um plano para o calote Celso Ming
- O ''PAC'' que funciona EDITORIAL ESTADÃO
- Mudança de enfoque - Merval Pereira
- Dilma e as sofríveis escolhas ALOISIO DE TOLEDO CÉSAR
- Refrescar a indústria Míriam Leitão
- Míriam Leitão O dragão na porta
- Prévias da discórdia Merval Pereira
- O governo e a batalha do câmbio Luiz Carlos Mendon...
- Coragem e generosidade Nelson Motta
- O discreto charme da incompetência Josef Barat
- O que pensa a classe média? João Mellão Neto
- Mensagem ambígua Celso Ming
- Um boné na soleira Dora Kramer
- O sucesso de um modelo ALON FEUERWER KE
- Merval Pereira Bom sinal
- IVES GANDRA DA SILVA MARTINS - A velhice dos tempo...
- VINÍCIUS TORRES FREIRE - Dólar, bomba e tiro n"água
- A Copa não vale tudo isso EDITORIAL O ESTADÃO
- ALBERTO TAMER - Mais investimentos. Onde?
- CELSO MING - O dólar na mira, outra vez
- DORA KRAMER - Jogo das carapuças
- Dólar e juros MÍRIAM LEITÃO
- Ética flexível Merval Pereira
- Roubar, não pode mais EDITORIAL O Estado de S.Paulo
- Da crise financeira à fiscal e política Sergio Amaral
- Ficção científica nos EUA Vinicius Torres Freire
- Dólar, o que fazer? Míriam Leitão
- Lá se vão os anéis Dora Kramer
- Mundo que vai, mundo que volta Roberto de Pompeu ...
- Desembarque dos capitais Celso Ming
- E se não for o que parece? José Paulo Kupfer
- Economia Criativa em números Lidia Goldenstein
- A inundação continua Rolf Kuntz
- Abaixo a democracia! Reinaldo Azevedo
- Veja Edição 2227 • 27 de julho de 2011
- Faxina seletiva MERVAL PEREIRA
- Eles não falam ararês MÍRIAM LEITÃO
- O impasse continua - Celso Ming
- Insensata opção Dora Kramer
- O Brasil e a América Latina Rubens Barbosa
- Justiça, corrupção e impunidade Marco Antonio Villa
- Agronegócio familiar Xico Graziano
- Ruy Fabiano - A criminalização do Poder
- Imprensa, crime e castigo - Carlos Alberto Di Franco
- Quando o absurdo se torna realidade Antonio Pentea...
- Vale-tudo ideológico EDITORIAL O Globo
- O bagrinho Igor Gielow
- Com o dinheiro do povo Carlos Alberto Sardenberg
- Questão de fé RICARDO NOBLAT
- Celso Ming O que muda no emprego
- Alberto Tamer E aquela crise não veio
- João Ubaldo Ribeiro A corrupção democrática
- Danuza Leão Alguma coisa está errada
- Janio de Freitas Escândalos exemplares
- Merval Pereira Dilma e seus desafios
- Dora Kramer Vícios na origem
- Ferreira GullarTemos ou não temos presidente?
- Roberto Romano Segredo e bandalheira
- Agência Nacional da Propina-Revista Época
- Presidencialismo de transação:: Marco Antonio Villa
- Dilma e sua armadilha Merval Pereira
- Guerra fiscal sem controle Ricardo Brand
- A Pequena Depressão Paul Krugman
- Longo caminho Míriam Leitão
- De quintal a reserva legal KÁTIA ABREU
- O que vem agora? Celso Ming
- Marco Aurélio Nogueira O turismo globalizado
- Os perigos de 2012 Editorial O Estado de S. Paulo
- Guerra de dossiês Eliane Cantanhêde
- Sinais de alerta Merval Pereira
- União reforçada Miriam Leitão
- Pagar, doar, contribuir NELSON MOTTA
- Roncos da reação DORA KRAMER
- Festa cara para o contribuinte EDITORIAL O Estado ...
- Em torno da indignação FERNANDO GABEIRA
- Brasil esnobou os EUA. Errou - Alberto Tamer
- O baixo risco de ser corrupto no Brasil Leonardo A...
- Triste papel Merval Pereira
- Financiamento da energia elétrica - Adriano Pires ...
- O partido do euro - Demétrio Magnoli
- Trem-bala de grosso calibre - Roberto Macedo
- A cruz e a espada - Dora Kramer
- O grande arranjo - Celso Ming
- À luz do dia ELIANE CANTANHÊDE
- Entrevista: Maílson da Nóbrega
- Arminio Fraga "Europa entre o despreparo e a perpl...
-
▼
julho
(245)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA