O Estado de S.Paulo - 17/08/10
A esquerda completou 200 anos. Começou na Revolução Francesa. Eram os antimonarquistas que, na Assembleia dos Estados Gerais, se sentavam do lado esquerdo. Desde então, a esquerda foi mudando sutilmente de sentido, mantendo a ideia geral de que esquerda eram os favoráveis ao povo e contra os privilégios.
O progresso tecnológico que tomou impulso ali por 1850 e a Revolução Soviética de 1917 mudaram o mundo, mas, por inércia, perpetuou-se a ideia de que esquerda seria tudo o que era pró-povo. Era uma distorção, mas as desigualdades mantinham o conceito vivo, já apoiado na bengala.
A partir de 1950 o consumo de massa deu os primeiros passos, com o fim da 2.ª Guerra Mundial e a aceleração do crescimento nos Estados Unidos, na Europa do Plano Marshall e no Japão. A tomada do poder pelos comunistas de Mao Tsé-tung, na China, e a guerra fria engessaram o conceito, mas nessa altura ele já andava de muletas, e não mais de bengala.
A política brasileira manteve, entretanto, uma característica curiosa, herdada, talvez, do populismo getulista. Todos queriam ser a favor do povo e, encabulados, definiam-se como "meio de esquerda". As ditaduras latino-americanas iniciadas nas décadas de 1960 e 1970 ajudavam. No Brasil, ser de esquerda era ser contra a ditadura, e aí o conceito parou. Velhos políticos, como os nossos principais candidatos presidenciais, formaram-se nessa época e congelaram o conceito em sua cabeça.
O País passou por muita coisa e mudou, principalmente a demografia. O Brasil de 2010 tem mais que o triplo da população da década de 1950. E esse crescimento acelerou-se até 1980, quando as mulheres brasileiras chegaram à conclusão de que não era mais vantagem ter tantos filhos, apesar do que achavam igrejas, militares e governos, que nada faziam para reduzir o ritmo de crescimento da população.
Os 66% da população brasileira nascidos a partir dos anos 50 já pegaram o conceito de esquerda à morte. O crescimento econômico acelerado incorporava cada vez mais pessoas à sociedade de consumo, por mais básico que fosse esse consumo.
A mídia de massa mostrava às pessoas como viviam a classe média e os ricos. E todos queriam ser ricos. A esquerda não era o caminho. Quando Ronald Reagan disse a Mikhail Gorbachev, em Berlim, "sr. Gorbachev, derrube esse muro", o Muro finalmente caiu em 9 de novembro de1989. Aí o conceito de esquerda perdeu qualquer significado, inclusive no Brasil.
Curiosamente, ainda em 2010 os dois candidatos à Presidência da República mais bem colocados nas pesquisas, formados politicamente que foram durante o regime militar, continuam com a dicotomia maniqueísta. Parecem não perceber que o Brasil e o mundo mudaram.
Fernando Henrique Cardoso, que, alegadamente, teria dito "esqueçam tudo o que eu escrevi", libertou-se das algemas. Lula só era "de esquerda" porque seus opositores assim o definiam. Ele estava fora da ideia de esquerda dos tempos da guerra fria. No dizer de um general importante do período 1964-1990, Lula sempre foi do sistema, isto é, ele lutou com as armas políticas aceitas e possíveis do fim do regime militar. Marina Silva é outra que não se encaixava nisso. Estava lutando pela sua floresta e era mais verde do que o azul ou o vermelho da guerra fria.
Mas os dois candidatos majoritários nas pesquisas seguem atraídos por conceitos que não fazem mais sentido. Em sua retórica de campanha batalham para responder à pergunta que o eleitorado não está fazendo: quem é mais de esquerda?
A candidata Dilma Rousseff (PT) - que num esquema tradicional seria chamada "de esquerda" -, curiosamente, porém, busca se afastar um pouco do conceito oco, enquanto o candidato José Serra (PSDB) se apega a ele, tentando convencer o eleitorado de que é mais "de esquerda" que sua principal concorrente.
Enquanto isso, em outros pontos do universo político, Aldo Rebelo, do PCdoB (SP), apoia e promove um projeto de lei para desengessar as regulamentações ambientais e facilitar o crescimento do moderno agronegócio brasileiro, e outros projetos essenciais para o enriquecimento. Uma postura totalmente inesperada para os que ainda se apegam aos conceitos anacrônicos de esquerda e direita. Eduardo Campos, do PSB, governador de Pernambuco, neto de Miguel Arraes, livrou-se da prisão conceitual e faz um governo tão livre quanto possível da dicotomia ultrapassada. Sérgio Cabral (PMDB), no Rio de Janeiro, filho de um comunista histórico, possivelmente ganhará em primeiro turno tentando ser um governador moderno.
Em São Paulo, o presidenciável José Serra, que insiste em se dizer de esquerda, quase não fala com o candidato a governador pelo PSDB, que faz questão de não ter nada que ver com esquerda ou direita, tendo chegado a ser apelidado de "picolé de chuchu", numa analogia com o que de mais insosso pode existir em gastronomia.
Quando será que os candidatos a presidente vão acordar e perceber o que o povo brasileiro já aprendeu: que a esquerda e a direita ficaram ocas? Elas não querem dizer mais nada. Com inflação baixa, crédito abundante e produtos para consumir, os eleitores de hoje são conservadores em relação a manter o que conquistaram ou ganharam nos últimos três governos - Itamar Franco, Fernando Henrique e Lula.
Roucos de tanto ouvir isso, os dois candidatos mais bem colocados nas pesquisas bradam coisas que a maioria do eleitorado brasileiro nem sequer sabe o que querem dizer. Insistem em responder à pergunta: quem é mais de esquerda? Quando o máximo que o moderno eleitorado brasileiro, de 135 milhões de pessoas, quer saber mesmo é: quem mais ainda é de esquerda?
Acordem, Dilma Rousseff e José Serra, parem de se esforçar para responder à pergunta que o Brasil não está mais fazendo.
CIENTISTA POLÍTICO, É DIRETOR-GERENTE DA EARLY WARNING: OPORTUNIDADE E RISCO POLÍTICO (BRASÍLIA)
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