O Estado de S.Paulo - 15/08/10
O fim da guerra fria, ao dissolver polaridades, deu espaço às latentes forças centrífugas da vida social. Daí uma sublevação de particularismos - para falar como Octavio Paz - que hoje se expressa no reivindicar de políticas de reconhecimento e identidade. Uma manifestação disso é o tema do multiculturalismo no plano dos direitos humanos.
A sublevação dos particularismos pode instigar a secessão dos Estados, com impacto desestabilizador para o sistema internacional, que é, institucionalmente, um sistema de natureza interestatal que se baseia em soberanias. Estas haurem sua legitimidade do princípio de autodeterminação nacional dos povos, que foi gerando o poder político e o significado moral da ideia de uma sociedade internacional.
O nacionalismo, com a sua dimensão de identidade e reconhecimento, permeia, por isso mesmo, a dinâmica do sistema interestatal. No entanto, para assegurar a estabilidade deste sistema e conter forças centrífugas, as normas do Direito Internacional tratam com rigor a aplicação do princípio da autodeterminação dos povos que possa dar margem às tensões difusas oriundas da secessão de Estados, questionadora da soberania. É por essa razão que o princípio é conjugado com o do respeito à integridade territorial dos Estados.
Faço estas considerações para comentar o alcance da decisão da Corte Internacional de Justiça, de 22/6/2010, sobre a declaração unilateral da independência do Kosovo, de 17/2/2008, que é uma das decorrências dos fatos que levaram às lutas e aos desastres humanitários da desagregação da Iugoslávia, na década passada. A decisão, fruto do parecer consultivo solicitado pela Assembleia-Geral da ONU, teve como objeto a questão da consonância dessa declaração, oriunda das instituições de autogoverno do Kosovo, com o Direito Internacional.
A resolução da Assembleia-Geral requerendo o parecer explica que ela foi motivada pela diversidade das reações dos membros da ONU a essa declaração. No correr do processo na Corte de Haia manifestaram-se não só a Sérvia, que estava na origem da resolução, e os autores da declaração unilateral do Kosovo, mas também diversos membros da ONU. Entre eles, muitos sabidamente preocupados com os riscos reais e potenciais da secessão de Estados. Por exemplo, Rússia (Chechênia), China (Tibete), Espanha (Catalunha), Irã (curdos), Chipre e Bolívia. O Brasil também expressou seu ponto de vista, dando ênfase ao princípio da integridade territorial dos Estados, em consonância com o valor da unidade nacional que caracteriza a nossa História desde a independência.
A Corte fez referências a declarações de independência do século 18 (como a dos EUA), às do século 19 (como as latino-americanas, na primeira onda de descolonização), às do começo do século 20 que levaram à criação de novos Estados (como os que resultaram da desagregação dos impérios multinacionais depois da 1.ª Guerra Mundial). Assentou que na segunda metade do século 20, por obra da ONU, o Direito Internacional da autodeterminação criou um direito à independência de povos de territórios destituídos de autogoverno e de povos submetidos ao domínio e à exploração estrangeira. Neste enquadramento jurídico se operaram a descolonização e a multiplicação de Estados no sistema internacional.
A Corte registrou a importância do princípio da integridade do território no relacionamento interestatal, mas nele não se aprofundou. Deliberou que nos termos da questão posta à sua apreciação não lhe cabia examinar seja a abrangência do direito à autodeterminação para além dos processos de descolonização, seja a existência de um direito à secessão, por conta do que apontei como a sublevação dos particularismos e suas consequências. Concentrou a sua análise na lex specialis criada pela Resolução 1.244, de 1999, do Conselho de Segurança. Esta, por válidos imperativos humanitários, propiciou uma presença da ONU, para estabilizar o Kosovo. A resolução contemplava uma solução negociada para definir o status futuro do Kosovo sob a égide da administração interina da ONU. Observo que após a guerra fria a negociação foi o meio que, em certos casos, deu origem a novos Estados na Europa, como a República Checa e a Eslovaca, assinalando o fim da Checoslováquia e os novos Estados oriundos da desagregação da União Soviética.
As negociações mediadas pelo enviado especial da ONU e também pela troika - União Europeia, EUA, Rússia - foram infrutíferas. Foi o impasse que levou à declaração unilateral de independência. A Corte entendeu que a resolução do Conselho de Segurança não impedia ou excluía a independência do Kosovo, como a resolução sobre Chipre. Concluiu que a declaração unilateral de independência não foi contrária ao Direito Internacional e não violou a Resolução 1.244 (1999) do Conselho de Segurança.
Quais as conclusões que podemos extrair da decisão da Corte? Como ela foi dada no exercício de sua competência consultiva, não é um comando. É um parecer que possui vis directiva. Tem, por isso mesmo, uma dimensão jurídica de consequências políticas, como o parecer consultivo, sobre a legalidade da ameaça ou do uso de armas nucleares, de 1996. A decisão legitimará a independência do Kosovo, hoje reconhecida por 69 países. Enfraquece a posição multilateral da Sérvia. É um reconhecimento dos fatos que vêm tornando tão complexamente insuportável a convivência dos povos nos Bálcãs. Dá uma abertura, via secessão, para encaminhar conflitos étnicos oriundos da sublevação dos particularismos. Não deixa, no entanto, de ser, apesar das cautelas especificadoras da Corte, um precedente que põe em questão o princípio da integridade territorial dos Estados. Neste sentido, a Corte aceitou a efetividade das forças centrífugas cujas tensões difusas permeiam a estabilidade da ordem mundial.
PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO FHC
Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
Arquivo do blog
-
▼
2010
(1998)
-
▼
agosto
(290)
- ARNALDO JABOR A volta do bode preto da velha esquerda
- Festa na véspera Miriam Leitão
- Disputa por espaço Merval Pereira
- DESORDEM PANDÊMICA Mario Cesar Flores
- Areia nos olhos do público EDITORIAL O Estado de S...
- Inépcia ou dolo - Dora Kramer
- O Brasil deles é melhor : Carlos Alberto Sardenberg
- Hermenêutica ideológica : Denis Lerrer Rosenfield
- Perdas e ganhos - Suely Caldas
- EUA reagem e sobra para nós - Alberto Tamer
- As limitações do biodiesel Celso Ming
- FERREIRA GULLAR Revolução na favela
- DANUZA LEÃO Só pra saber
- Nelson Motta Paixões perigosas
- Editoriais
- Maciel, Jarbas e Raul rebatem o presidente
- Usurpação de cidadania Dora Kramer
- Poço sem fundo Miriam Leitão
- O DIREITO AO RISO Gaudêncio Torquato
- Tsunami governista Merval Pereira
- Una derrota en todos los frentes Por Joaquín Moral...
- MARIANO GRONDONA La crisis del relato setentista
- DENTADURA, SAPATO OU EMPREGO João Ubaldo Ribeiro
- A riqueza do mundo LYA LUFT
- O DESCONSOLO DA PERDA BETTY MILAN
- Sem perdão J. R. Guzzo
- REAPRENDER A ROMPER A MORDAÇA Mauro Chaves
- Chega de queimadas Miriam Leitão
- MERVAL PEREIRA Pela causa
- UM LEGADO EXPLOSIVO EDITORIAL O ESTADO DE SÃO PAULO
- A guerra do México e o Brasil :: Clóvis Rossi
- Um princípio na defesa da democracia – Editorial /...
- Uma lição prática de economia :: Luiz Carlos Mendo...
- Aparelhamento desafia o Estado – Editorial / O Globo
- Só para lembrar
- Motor ou freio Miriam Leitão
- Um ou dois murrinhos LUIZ GARCIA
- O crime continuado do PT EDITORIAL O ESTADO DE SÃO...
- Sonho verde Merval Pereira
- Editoriais
- Reforma global - Celso Ming
- Continuísmo - Dora Kramer
- Um grande paradoxo brasileiro Roberto Lent
- Reinaldo Azevedo
- Augusto Nunes
- Dora Kramer-Crime organizado
- Falha da oposição Miriam Leitão
- Lula inventou uma fábula CLÓVIS ROSSI
- Uma doutrina por trás da censura Eugênio Bucci
- "O alvo era Serra" RENATA LO PRETE
- Delinquência estatal EDITORIAL FOLHA DE SÃO PAULO
- Banaliza-se a invasão de privacidade EDITORIAL O G...
- A arma do papel-jornal EDITORIAL O Estado de S.Paulo
- A máquina Merval Pereira
- Ruim com ruim Celso Ming
- Governo estuda criar outra reserva em RR Índios qu...
- Definição de preço pode derrubar ainda mais ações ...
- A Unasul à deriva Rodrigo Botero Montoya
- Comentario no Blog do Reinaldo Azevedo
- MÍRIAM LEITÃO Onda latina
- Declínio americano? Luiz Felipe Lampreia
- O novo alvo do 'grande eleitor' EDITORIAL O Estado...
- Eleição sem política :: Marco Antonio Villa
- Obsessão Merval Pereira
- Faz de conta Dora Kramer
- Equação complicada Celso Ming
- Legislar o riso e sacralizar o poder?Roberto DaMatta
- Não ao "dedazo" de Lula :: Roberto Freire
- Não era para acreditar Rolf Kuntz
- Fundos estão quase sempre onde capital privado não...
- AUGUSTO NUNES
- Editoriais
- RUBENS BARBOSA Comércio exterior e o futuro governo
- LUIZ GARCIA O que não fazer
- MÍRIAM LEITÃO Juros devem parar
- MÍRIAM LEITÃO Juros devem parar
- BOLÍVAR LAMOUNIER A 'mexicanização' em marcha
- CELSO MING Restrições aos chineses
- MERVAL PEREIRA Campos de batalha
- DORA KRAMER A menor graça
- ARNALDO JABOR Estou nascendo hoje na internet
- Oportunidade perdida Alon Feuerwerker
- MARCELO DE PAIVA ABREU Desfaçatez em escala indus...
- Previdência privada exige cuidados Antonio Pentea...
- Pagamos mais caro. E agora? Carlos Alberto Sardenberg
- O modelo e o futuro : Fabio Giambiagi
- Lula e Cabral, vídeo revelador Carlos Alberto Di ...
- FERREIRA GULLAR Eu fui às touradas em Barcelona
- MERVAL PEREIRA Luta pelo Congresso
- DANUZA LEÃO O bem maior
- MÍRIAM LEITÃO Está vindo?
- DORA KRAMER Desencontro marcado
- JOAQUÍN MORALES SOLÁ La guerra más peligrosa de lo...
- MARIANO GRONDONA Sin las retenciones, ¿terminará u...
- ROBERTO MUYLAERT Em 2014, o Brasil tem de vencer
- JOÃO UBALDO RIBEIRO COMO SERIA BOM
- MAÍLSON DA NÓBREGA Obras e desenvolvimento
- ROBERTO POMPEU DE TOLEDO Pode piorar sim, Tiririca
- Gaudêncio Torquato 'Pior do que tá não fica'
- Sergio Fausto Direitos humanos às escuras
-
▼
agosto
(290)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA