Ainda é impossível avaliar a efetiva dimensão da crise financeira mundial. Não parece haver indicação de que tenha arrefecido a seqüência de revelações a respeito da gravidade da situação de intermediários financeiros importantes tanto nos Estados Unidos quanto na Europa. Mais grave, há indicações da necessidade de aumento substancial na injeção de recursos financeiros em instituições que já haviam sido socorridas, tal como a seguradora norte-americana AIG.
A escala da contração real na esteira da crise financeira também é incerta, e não apenas porque ainda é prematuro chegar a um diagnóstico conclusivo sobre as dimensões da crise estritamente financeira. Provavelmente haverá crescimento negativo do PIB na Europa dos 15 e, mesmo assim, se o aperto financeiro não se agravar. Os Estados Unidos estão à beira da recessão. As informações precárias sobre a queda da demanda por produtos chineses indicam que a invulnerabilidade da China poderá ser duramente posta à prova e a sua taxa de crescimento anual do PIB poderá ser significativamente abaixo de 9%.
As dificuldades em relação às ações internacionais coordenadas são formidáveis. Escrevo antes da reunião de fim de semana do G-20. Gostaria de ser desmentido, mas tudo indica que resultará em confirmação da sabedoria do Barão de Itararé: donde menos se espera, é dali mesmo que não sai nada. Para começar, a reunião foi prejudicada pela ausência do futuro presidente dos Estados Unidos. Barack Obama evitou se contaminar com o desgaste de George W. Bush. Não interessa politicamente ao novo presidente levantar qualquer dúvida quanto à paternidade republicana da crise e da recessão. O interesse europeu na crise é um reflexo combinado do protagonismo de Nicolas Sarkozy, do desejo de Gordon Brown de faturar politicamente os seus acertos quanto às modalidades de apoio a intermediários financeiros claudicantes e do desejo de George W. Bush de atenuar as agruras de sua posição de lame duck extremamente impopular. As discordâncias em relação à forma que poderiam tomar os esforços de reforma regulatória do setor financeiro indicam quão árduas e longas serão as negociações futuras.
Entre os membros do G-20 que não são membros do G-8, especialmente no caso do Brasil, é persistente o discurso queixoso quanto à situação desfavorável das economias em desenvolvimento em meio à crise que teve origem no mundo desenvolvido. Além de ser difícil pensar em crise sistêmica gerada fora do centro do sistema, é necessário avaliar se é realista adotar tal posição em meio à crise. Se, na bonança, as economias desenvolvidas eram reticentes, não será agora que essa atitude vai ser alterada. O governo brasileiro considera prioritária a conclusão da Rodada Doha, mas o impacto sobre a renda mundial de uma rodada bem-sucedida é desprezível ante o que poderia resultar de políticas compensatórias de natureza fiscal ou monetária. O impacto da crise sobre os preços agrícolas tornou a proposta dos Estados Unidos sobre subsídios, em junho, mais generosa do que parecia e, também, de digestão política mais difícil. Seria desejável uma limitação concreta ao ressurgimento do protecionismo, mas a conclusão das negociações em Genebra parece ter prioridade baixa para a maioria do G-20.
As medidas horizontais - isso é, sem discriminação a priori de setor beneficiado -, tomadas pelo governo brasileiro para enfrentar a crise financeira, foram eficazes na reversão da contração de crédito externo e interno. O governo também garantiu acesso a linhas de financiamento do Federal Reserve (Fed) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) com base na reputação de gestão econômica prudente.
Já outras decisões, como a provisão de crédito público para sustentar a demanda do setor automobilístico ou as compras de bancos públicos e privados pelo Banco do Brasil, são discutíveis e devem encontrar a explicação no plano de jogo político do presidente Lula.
Até a eclosão da crise, o presidente, amparado na sua fortuna e astúcia política, pensava ser possível eleger qualquer candidato em 2010. A crise enfraqueceu a candidatura Rousseff e aumentou o temor presidencial com as conseqüências de uma queda do ritmo de expansão da economia. Dizem alguns que o presidente teme igualmente as conseqüências políticas de um recrudescimento inflacionário. Não é o que estão revelando as "ousadas" ações discricionárias na provisão de crédito e compras de ativos públicos e privados. Nem a sanção presidencial, por omissão, do lamentável comportamento do ministro da Fazenda, que usou a reunião preparatória do G-20 para advogar a redução da taxa de juros no Brasil.
Um novo plano de jogo presidencial deveria incluir mais prudência econômica - tornando as decisões menos discricionárias - e ousadia política na reavaliação de candidaturas em 2010.
*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é
professor titular do Departamento de Economia da PUC-RJ