A partir dos anos 1980, o fim da polarização ideológica e o acesso aos mercados globais haviam levado a uma profunda transformação na política e na economia. Os Estados nacionais tornaram-se atores mais frágeis e as grandes corporações globais impuseram o seu estilo de busca de lucro a qualquer preço, operando nas zonas cinzentas do mercado e fragmentando sua produção mundial. Esse foi, aliás, o caminho da incorporação da China ao processo capitalista, do qual se tornou parceira muito relevante. As questões relativas à regulação passaram a ser rejeitadas como indesejáveis resíduos arcaicos que tentavam limitar o vigor do capitalismo vencedor.
A crise atual provocou uma reviravolta momentânea nesses conceitos. Neoliberais viraram keynesianos e governos democráticos dos países líderes mundiais alocaram volumes equivalentes a quase 20% de seus respectivos PIBs para socorrer bancos e empresas submetidas a gestão temerária, sob a justificativa, parcialmente verdadeira, de que estão protegendo casas, poupanças e empregos da população. Enquanto isso, o ex-presidente do Federal Reserve (Fed) Alan Greenspan pedia desculpas ao mundo por não ter percebido que o mercado tinha virado um cassino e exigia controles.
A erosão da confiança dos cidadãos em seus dirigentes e nas instituições políticas é o principal problema das democracias atuais. Em tempos de capitalismo global o individualismo se exacerbou, a esfera pública se erodiu, a vontade política declinou e os interesses privados se impuseram nos altares do mercado. As segundas hipotecas e os subprimes só ocorreram porque os cidadãos norte-americanos foram induzidos ao consumo conspícuo pela propaganda, levando-os a imaginar que a escalada absurda de preços dos seus imóveis seria permanente. O mundo macroeconômico havia entrado numa fase de alta complexidade e especialização, em que dominam opiniões tecnocráticas muito distantes da sensibilidade do cidadão-consumidor; o capitalismo financeiro global disso se aproveitou e vendeu-lhe fantásticas miragens e ilusões.
A era da abundância de recursos naturais já havia terminado antes da crise. Mas o poder econômico continuava garantindo que as novas tecnologias "dariam um jeito". Cientistas respeitáveis, no entanto, alertavam que - mais alguns passos da humanidade na direção errada - a crise ecológica poderia ser irreparável, vitimando gerações futuras. A questão é de quem são as escolhas e a quem elas beneficiam. Como conseguir uma mudança radical de modelo de produção, com a redução do consumismo desenfreado e do sucateamento, se o mercado livre é a lei e os grandes atores econômicos têm total liberdade de definir a direção dos vetores tecnológicos? Alguém acredita que o próprio mercado possa auto-regular-se? Quem vai ser capaz de enfrentar a batalha gigantesca de reconversão da lógica privada de produção em nome do futuro da civilização?
Howard Davis, diretor da Escola de Economia de Londres, descreve o kafkiano conjunto de uma centena e meia de entidades e comitês internacionais que até aqui faziam de conta que controlavam o sistema financeiro internacional. O Comitê da Basiléia precisou de uma década para determinar os padrões de regulação Basiléia 2 - tudo jogado no lixo pela crise. Davis defende regras duras para amarrar as partes soltas do sistema, incluindo seus buracos negros, do tipo paraísos fiscais. E prega a indução dos bancos a comportamentos contracíclicos. Por exemplo, se os preços dos ativos se mostram muito diferentes dos padrões históricos, deve-se impor a eles um aumento de capital adicional que reflita os custos potenciais de uma eventual queda dos preços.
A crise iniciada pelo colapso do sistema financeiro pode, de fato, gerar uma nova era de regramento do lado desenfreado do capitalismo global? Quem serão os seus agentes? Políticos movimentam-se de forma hiperativa, outorgando-se poderes de épocas de guerra; mas ainda estão tão perdidos, como os economistas e intelectuais. Suas posições oscilam entre a antevisão das "folhas de outono" do fim do capitalismo até a assunção de que esta é uma mera crise de ajuste e será resolvida com certa socialização de prejuízos e alguma regulação. Mas a sua verdadeira natureza é tão complexa que conduz a uma cegueira relativa.
Ulrich Beck diz que o comportamento atual das autoridades mais lhe parece o daquele bêbado que procura sua carteira perdida em meio à noite escura, com o facho de uma lanterna. Ao ser perguntado: "Foi mesmo aqui que você a perdeu?", ele responde: "Não, mas a luz desta lanterna me permite ao menos continuar procurando." Beck lembra que risco e dano não significam necessariamente catástrofe, mas que a percepção dos seus efeitos futuros em áreas críticas como clima, finanças ou terrorismo instaura um estado de exceção ilimitado que transcende a escala nacional para a dimensão universal. O problema é que a legitimidade de uma ação cosmopolítica em face das crises globais depende muito do foco das mídias, que só as abordam quando elas viram catástrofes.
Em suma, a profundidade e qualidade desta crise tanto pode ser de fundamentos quanto de forma, ou de ambos. Muitas águas ainda rolarão sobre as escoras do capitalismo global. E algumas dessas ainda podem cair com a força das correntes. Estruturas e equilíbrios de poder vão-se alterar tanto na política como na economia, e muito exigirão de seus atores principais. Especialmente de Barak Obama, tido como analista frio e construtor de consensos.