A eleição de Obama comprova ou não a teoria
da excepcionalidade americana? Podem duvidar,
mas o teste da antidiscriminação ficou mais
difícil para o mundo inteiro
Vilma Gryzinski
Ed Reinke/AP |
CIDADE ILUMINADA |
Como qualquer povo, os americanos se acham melhores do que os outros. Ao contrário dos demais, têm provas a seu favor: a hegemonia econômica, a supremacia tecnológica e, este o fator mais irritante para estrangeiros e não-crentes, o que muitos americanos consideram a superioridade moral de seu sistema político e social sobre todos os demais. O discurso de vitória do presidente eleito Barack Obama começou reafirmando exatamente esta narrativa autocelebratória: "Se existe alguém que ainda duvide que a América seja o lugar onde todas as coisas são possíveis, que ainda se pergunte se o sonho de nossos fundadores continua vivo em nosso tempo, que ainda questione a força de nossa democracia, a resposta está aqui esta noite". Devido à empatia extraordinária de Obama, transformado como outros mitos modernos numa tela na qual as massas projetam seus melhores desejos de elevação ética ou espiritual, não ocorreu a ninguém, ou apenas a uns poucos desmancha-prazeres, incluir o discurso na categoria clássica da teoria da excepcionalidade.
É difícil discordar de Obama quando diz que sua vitória comprova o papel ímpar da democracia americana de dar oportunidades, sem limites, a quem merece e promover a regeneração das feridas sociais. O conceito de que os Estados Unidos, ou a América, constituem um lugar único tem raízes religiosas e figura entre os mitos fundadores dos países do Novo Mundo, incluindo o Brasil. Ao contrário do apelo material da abundância paradisíaca da terra dos papagaios, onde bastava plantar para ter, os calvinistas puritanos que colonizaram os Estados Unidos tinham como bússola austeros preceitos ético-religiosos. Nasceu deles a idéia de que a América seria como "uma cidade iluminada no alto da montanha", endossada por um contrato social de origem divina e destinada a ser um farol para o mundo. Desde os tempos de John Adams a imagem reaparece em discursos de sucessivos presidentes americanos. Era particularmente cara aos escritores a serviço de Ronald Reagan. Devido à metáfora elegante e poética de uma cidade ideal iluminando o mundo, sobreviveu a outra expressão da mesma idéia, a do destino manifesto. Cunhada como justificativa ideológica da expansão territorial do punhado de estados da Costa Leste que constituíam o país original, ela se processou, na prática, pelos métodos conhecidos. Os novos territórios foram anexados, comprados, roubados ou ocupados por pioneiros até que se chegasse à costa do Pacífico. Uma corrente dos propugnadores do destino manifesto pensava em levar a coisa adiante, incluindo Canadá, o México inteiro, Cuba e a América Central – bem, estes dois últimos foram durante uns tempos, bons tempos segundo os nostálgicos, um puxadinho dos irmãos do Norte.
O mito nacional da missão divina transformou-se em filosofia inspiradora da política internacional na época do presidente Woodrow Wilson, quando a carnificina da I Guerra Mundial consolidou a idéia da exaustão física e moral da Europa e do papel da América de mostrar "às nações do mundo como trilhar os caminhos da liberdade". A partir daí, alternaram-se duas correntes: uma idealista, ancorada no princípio intervencionista de que os Estados Unidos tinham o dever de exercer sua influência benigna sobre os necessitados (ou imperialismo americano, na definição dos inimigos ou simplesmente inconformados), outra mais conservadora e pragmática, tendendo para o isolacionismo. O presidente George W. Bush era da segunda turma e, por causa do 11 de Setembro, mudou de lado: passou a defender uma espécie de intervencionismo permanente para "acabar com a tirania no mundo". Deu no que deu. Obama também quer "mudar o mundo", embora, evidentemente, de uma perspectiva diferente da de Bush. Pelo seu discurso, acredita igualmente no excepcionalismo americano. Através de sua eleição, os americanos subiram os padrões para quem não aceita essa idéia. Algumas sugestões do que deve acontecer para que outros países a contestem de fato: a França precisa eleger presidente um muçulmano de origem argelina; a Inglaterra, um primeiro-ministro paquistanês; a Alemanha, um turco; a Turquia, um armênio; a China, um tibetano; o Irã, um cristão; a Rússia, um checheno; e o Japão, um dekassegui brasileiro. O que nos traz de volta ao Brasil, onde somos praticamente todos Obamas e um presidente como ele teria valor simbólico extraordinário. Mas o verdadeiro teste do triunfo da igualdade de oportunidades e do fim de qualquer tipo de discriminação seria votar em um presidente originário de uma onda imigratória menor, porém consistente.
Que tal um presidente argentino?